quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Meu retorno a Porto Alegre

 Carta aos meus colegas do Case Regional Pelotas        


          Ingressei no mundo do trabalho em 1969, no então Instituto Central de Menores, ligado ao Departamento de Assistência Social-DEPAS, com a atribuição de alfabetizar os' menores' acima de 14 anos, pois estes não eram aceitos na escola que funcionava nas dependências do instituto. Desde o meu primeiro dia de trabalho, deixei explícito que lutaria contra os maus tratos, a negligencia e o descaso. Devido a esta postura, fiz grandes amizades, mas também conquistei alguns inimigos. Certa vez um colega me disse: em relação a ti não existe meio termo: ama-se ou odeia-se.
                   Fui alfabetizadora, praxiterapeuta, monitora, instrutora de artes, auxiliar técnica, coordenadora de ala, assistente de direção, diretora, psicóloga, enfim... Toda minha formação profissional foi forjada na FEBEM e fiz a opção de dedicar-me a esta causa incondicionalmente. Sempre tive orgulho disto. Minha história de vida se mistura com minha história na FEBEM. E ao longo destes 41 anos, são muitas as histórias, são muitos protagonismo, são muitos momentos de companheirismo, muitas aprendizagens que, certamente, superam as frustrações, as tristezas, os conflitos, as incompreensões.
                   Em 1992, quando assumi o espaço  da presidência  do extinto Movimento Assistencial de Porto Alegre - MAPA, que atendia Meninos e Meninas de Rua, no momento de minha posse, no saguão do Paço Municipal onde estavam presentes vários daqueles meninos que utilizavam os serviços do MAPA, principalmente no Albergue Ingá Brita, que os acolhia à noite, um deles, um lindo menino negro, me disse: ' Dona Sandrali, nós chegamos ao poder. ' pois bem, eu estava realizando um sonho impossível. Mas eu falei: Não, nós ainda não estamos no poder: nós só chegaremos ao poder quando não existir mais albergues, quando cada um e cada uma tenham uma casa para viver bem, quando toda escola for aberta para todos, quando cada pai tenha emprego, onde cada mãe seja respeitada, onde cada família seja tratada como o maior bem da sociedade, quando não houver discriminação , nem racismo.
                     Hoje quando Zélia Fajardini diz que a Presença já significa poder, eu me reporto àquele momento, lá em 1992... Minha Presença tinha significado que concedia à alma daqueles meninos e daquelas meninas o sentimento de estarem no poder.
                     E se estou recordando estas coisas é apenas para convencer a mim mesma do quanto já proporcionei o protagonismo no cenário do sonho impossível. Dizer a mim mesma que é possível gerenciar pela alma e eu sei fazer isto.
                     Em 1999 vim para Pelotas. Aqui fui acolhida e vivenciei um sonho de trabalhar numa instituição onde não havia, mas tratos, não havia abuso sexual, não havia drogas. Algumas vezes, e não foram poucas, fomos taxados de rígidos e deixamos de ganhar alguns prêmios devido a tal rigidez. Mas não nos envergonhávamos de aqui trabalhar. Dizem que o PEMSEIS tem muito da proposta inicial do trabalho de Pelotas. Acredito que sim. Mas hoje, talvez sejamos a unidade que mais descumpre o PEMSEIS. Porém eu acredito na essência e na alma de cada um que aqui trabalha e sei que ainda é possível resgatar aquilo que tínhamos de melhor: afeto,  limite e unidade na ação.
                     Nestes doze anos, aqui em Pelotas, procurei repassar - com a alegria despretensiosa e com a disciplina prazerosa pelo trabalho -, minha experiência com os adolescentes em conflito com a lei, tentando fazer cumprir o ECA na execução de medida socioeducativa de privação de liberdade,  embora sabendo que a Fase estampa o fracasso da sociedade no trato de suas crianças e adolescentes e da violência estruturalmente construída. Tive acertos e erros. Mas também aprendi muito e sinto-me grata por isto.
                    Então, passados todos estes anos, surge um novo momento me vejo frente a um desafio dos deuses: vá lá e dê sequência ao teu sonho: É possível gerenciar com a alma e influenciar nas estruturas de poder com simplicidade,  leveza, liberdade e diálogo. E se tiver que disputar que seja para buscar a unidade, que seja para realizar o sonho de viver numa sociedade justa, fraterna, solidária.
                    E daí está, aqui e agora, a expressar a vocês parte do meu Sonho...
Eu sonho que é possível tirar as crianças da rua e proporcionar-lhes uma forma de inclusão social com dignidade, respeito e amorosidade;
Eu sonho que toda criança conheça o mar...
Eu sonho que é possível criar programas efetivos para livrar as meninas e as adolescentes da promiscuidade, das doenças e das drogas;
Eu sonho que é possível cuidar melhor dos doentes mentais;
Eu sonho que é possível realizar campanhas permanentes de ações contra o racismo;
Eu sonho que é possível cuidar melhor das famílias;
Eu sonho que é possível que todas as crianças estejam na escola;
Eu sonho que as crianças negras sejam maciçamente trabalhadas quanto a sua identidade e à autoestima, como as minhas o foram;
Eu sonho que cada empregada doméstica possa voltar a estudar, se assim o desejar;
Eu sonho que toda mulher possa desfrutar de uma terapia, se assim necessitar;
Eu sonho que todos os terceiros sejam respeitados, principalmente aqueles que são dirigidos por mulheres;
Eu sonho em poder trabalhar com as escolas na formação dos professores;
Eu sonho com uma sociedade livre da corrupção;
Eu sonho com a erradicação da miséria, da fome, do analfabetismo;
Eu sonho que a Fase possa cumprir com sua missão na inclusão social dos adolescentes em conflito com a lei e que o afeto e o limite sejam apenas as duas faces da mesma moeda, mas que essa moeda seja a única forma de negociação;
Eu sonho que eu possa circular nas instâncias do poder constituído com a mesma simplicidade, sem precisar fala muito, mas como alguém cuja presença diga mais do que a palavra e que eu possa  acolher sempre, amar sempre e ofertar sempre o melhor cardápio que eu aprendi a fazer.
                                              Obrigada a cada um e cada uma de vocês que fazem parte deste sonho.
                                                                                       Sandrali de Campos Bueno
                                                                                               Mat. 073.7
                                                                                        31/12/2010



















                   






Um comentário:

  1. “sonhar mais um sonho impossível lutar quando é fácil ceder...”
    Eu nunca sei por que afirmamos que nossos sonhos são impossíveis...
    Mas que bom que continuamos a afirmá-los... Quem sabe assim vamos nos encontrando e tecendo a possibilidade de realizá-los... Passaram-se mais de 20 anos... Ainda lembro muitas das situações, das falas, dos desafios, das orientações... E nunca esqueço da “melhor de todas”: alimentar-se da própria necessidade de ver o sonho realizado... Nutrir a esperança no olhar dos que amam e sabem que precisam – porque todos precisam, muitos acham que ainda não sabem, ou que pode ser daqui a pouco – um mundo melhor no agora...
    Teres sido minha primeira “Chefe”... marcou minha Vida com Mais Amor... Sempre Grata!

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