quinta-feira, 10 de março de 2016

Às pessoas brancas que são minhas amigas.

               Relaciono-me  com várias  pessoas brancas: pessoas que reivindicam o lugar de irmandade com os mesmos conflitos inerentes aos relacionamentos intrafamiliares; pessoas que, em determinados momentos, ocuparam o lugar  de solidariedade incondicional, a ponto de pôr em risco sua própria estabilidade;  pessoas de eterna permanência no lugar de filha-afetiva-espiritual, com mil passagens pelas minhas vidas, como sendo a alma gêmea de que falam os místicos; pessoas que são o contraditório diante das radicalidades inerentes às afiliações a grupos e confrarias; pessoas que compartilham o cotidiano dos espaços sagrados da minha tradição,  vivenciando os pressupostos civilizatórios da matriz africana; pessoas cuja relação transcende o respeito e atinge a admiração da aprendiz pela mestra, partilhando os avanços e recuos na luta por um mundo livre de preconceitos; pessoas cuja divergências são apenas linhas que correm paralelas aos meus vetores, na mesma estrada, como trilhos inseparáveis que formam o caminho por onde transita o trem dos sonhos e das utopias de quem acredita que 'um mundo melhor é possível'; pessoas que contribuem na construção do meu arcabouço teórico e epistemológico, através da visita de outras formas de pensar as construçoes das singularidades e das desconstruções conceituais; pessoas que vibram com meu jeito de desafiar o instituído na busca de respostas inovadoras que sirvam de encontros com a alegria e o prazer que o conhecimento propicia; pessoas que simplesmente apreciam os diálogos, ao final da tarde, nos anexos da alma chamados pela alcunha de bares, praças, ruas e avenidas transformadas em espaços onde a democracia se faz corpo e alma; e a pessoa onde encontro “meu refúgio e meu abraço depois do cansaço”.

                 São tantas as pessoas brancas a transitar pelas vias dos caminhos por onde meu corpo passa, amalgamado pelas vivencias de outros corpos, numa circularidade fortalecida pela troca infinita, que justifica minha presença nas suas vidas, que adjetivá-las, pela cor da pele, é apenas um jeito de alertar que o racismo faz parte da natureza da branquitude. Alerta que estas pessoas, que comigo são afetadas pela troca de saberes e de sensações, não ousam falar por mim, pois antes de qualquer coisa, como são minhas amigas, sabem que eu sei do racismo que há dentro delas e com o qual convivem querendo ou não.
                As pessoas brancas que são minhas amigas percebem e reconhecem o lugar privilegiado que a branquitute a elas confere. As pessoas brancas que me tem como amiga , respeitam-me como a ‘chata” que sempre apontou o racismo de cada uma. Portanto, encerro dizendo: obrigada, pessoas brancas que são minhas amigas! Obrigada, pelo bem-estar de vocês mesmas que se tornaram pessoas melhores, ao terem que abandonar o desejo contido de adotar a postura de sinhazinha e sinhozinho.

domingo, 6 de março de 2016

Carta a minha sobrinha Jessica


                                                                            Porto Alegre, 6 de março de 2016.

 Jessica,  minha jovem mulher Negra Espelho.

                     A vida tem sentido quando deixamos nossa marca e nossa herança genética seja ela através de nossos feitos, seja através dos feitos que hão de ser feito pelos nossos. E a tua reação, querida Jessica, diante de um ato de racismo sofrido por tua irmã, na escola, deu-me a certeza de que a vida das mulheres e dos homens da nossa família tem sentido. Temos a marca da indignação diante de qualquer ato que fira nosso direito de ser e de ‘tornar-se pessoa’, em busca do seu lugar, em todos os lugares, com a mesma dignidade com que nossos ancestrais forjaram, no corpo e na alma, o direito de expressar a revolta diante dos ditames da opressão e do racismo. Por isso, nós não podemos aceitar que, professores e direção de uma escola, minimizem o sofrimento de uma adolescente de 14 anos que teve sua autoestima ultrajada e a sua herança genética vilipendiada por um comentário racista, explicitado como se fosse brincadeira, alem de demonstrarem não estarem preparadas para lidar com manifestações racistas entre seus alunos. Para nós, cuja herança é negra, é afrodescendente, “bulling” é racismo! Só nós sabemos a marca que supostas brincadeiras causam na nossa trajetória de convívio social. Só quem sente , sabe a dor que perpassa pela percepção de que não nos aceitam porque não temos a cor da pele daqueles que se entendem como sujeitos “do tudo pode”, nem os cabelos lisos daquelas que se veem representadas como padrão único de beleza e de afirmação de convivência pacífica nas relações instituídas, desde a mais tenra idade, nos bancos escolares, a ser consolidado pela hegemonia  racista, classista e patriarcal  de uma sociedade que não se reconhece,   enquanto nação, ao se envergonhar de suas raízes indígenas e africanas, preferindo permanecer com a herança e os resquícios de colônia europeia.
    
                    Houve um tempo que essa dor era silenciosa, tão silenciosa que a reação de uma adolescente quando lhe era colocado o espelho do olhar preconceituoso, perversamente reforçado pela voz afirmativa de uma educação racista, era a utilização de mecanismos de defesa que reafirmavam o mito da democracia racial e assumia a postura de revolta interior e de briga com o que Sê É na mais ampla conexão com outros corpos, pois esperava-se que o espelho social refletisse a mesma imagem que era vista  e sentida no olhar afetivo das pessoas  iguais, no convívio do lar, no convívio da sua comunidade. Como isso sempre foi impossível, a sociedade  nos obrigou a sermos ovelhas guiadas por um pastor chamado inconformismo ‘intra-raivoso’ e edificou seu racismo-machismo. sob o pressuposto  de  nos tornar uma caricatura embranquecida, nos gestos, nas atitudes, nas escolhas, nas falas, nas relações; enfim, obrigaram-nos a manter a alma, o corpo, o olhar, o querer, a autoestima, numa prisão onde os padrões, inacessíveis e exógenos, estão destituídos de qualquer vínculo com o espelho de nossa verdade interior. A verdade de que somos feitos à semelhança da Natureza, a verdade de que somos uma das expressões da Origem da Humanidade, a verdade de que somos Terra, Fogo, Água e Ar, na mesma proporção que todos os seres vivos que habitam esse planeta.

                    Este mesmo tempo, que para nós é sagrado por ser a expressão da luta cotidiana, dos devires, das multifacetas da corporeidade e das singularidades, mostrou que, se o espelho social não reflete nossa imagem, chegará a hora de nos reconciliar com a imagem interna e sermos o espelho de nós mesmas. E essa hora chegou! Deixamos a reação de lado e passamos à ação. Deixamos de brigar com a aparência, deixamos de nos revoltar com desejos impostos pela branquitude, deixamos de nos caricaturar naquilo que nunca fomos e jamais seremos. Soltamos as amarras do padrão eurocêntrico. Deixamos de nos mirar num espelho embaçado e passamos a nos mirar nos encontros alegres e nos sorrisos espontâneos, traduzidos no reflexo negro do olhar das crianças, das jovens, das mulheres e dos homens despojados de preconceitos e passamos a ter como referência a beleza intensa e colorida da negritude. E passamos a gritar exigindo respeito como Jennifer fez na sala de aula, ao ter sido confrontada com o racismo-machismo do seu colega que, de forma “ludicamente” perversa, comentou sobre o ato de arrumar os cabelos dizendo não ser necessário “porque o teu cabelo é ruim e feio”. Jennifer mostrou-se como ovelha negra. Sua dor exigiu respeito e gritou.  E, mais humilhante ainda. foi o descaso da professora e da direção da escola. Jennifer chorou e a humilhação transformou-se em indignação. O cabelo crespo da Jennifer, assim como sua indignação se espelha em ti Jessica: na conquista de se ver a partir do teu espelho, pois é contigo que se identifica;  quer ser linda como tu és, uma jovem mãe negra que faz o que quer de seus cabelos, de sua beleza, de seu corpo e do seu lugar dando sentido às tuas escolhas, aos teus traumas , às  tuas cicatrizes e à tua subjetividade, diante da ferida narcisista de “tornar-se negra”, conforme nos revela Neuza dos Santos Souza(1983) em seu trabalho Tornar-se Negro.

                    Hoje não queremos mais a reação de nos apresentar diante da vida de forma caricatural. Hoje nossa ação é encontrar nossas raízes e nossa ancestralidade como alicerce para desvelar significados racistas na atitude e conduta da instituição escolar e demais instancias e segmentos da sociedade brasileira. Hoje somos todas ovelhas negras que nos auto-conduzimos. Ainda sentimos a dor que o racismo nos impõe, ainda temos cicatrizes, mas hoje a dor não é silenciosa. A dor se transmuta em ação.   Ela é barulhenta, barulhenta como o som dos nossos tambores que nunca estiveram adormecidos e será tão ensurdecedora até que nossas vozes sejam ouvidas e respeitadas e o barulho seja um encontro alegre de todas as cores, saberes e fazeres, de várias faces e vários rostos, de éticas que convirjam em direção do ‘devir a ser’ de cada pessoa e da liberdade plena sem a preocupação com o limite da outra, pois o limite será a felicidade de todas porque cada pessoa só se contentará em ser feliz se todas o forem.

                    Por tudo isso, querida Jessica, abençoada seja a tua ação, abençoada seja a tua fala, abençoado seja o barulho da tua voz na defesa do direito de que a Jennifer e de que toda adolescente, toda jovem, toda mulher seja o espelho de si mesma para que tantas outras se mirem no DevirMulherNegra.          
                                                     Que sejas sempre meu espelho assim como serei sempre o teu.
                                                                                      Tua tia  
                              Sandrali de Campos Bueno- Iyá Sandrali de Oxum