Texto básico da palestra proferida no Encontro Estadual Mulher,Saúde, Sexualidade e Raça , realizado em Pelotas, no período de 24 a 26 de março de 1995. Painel: Políticas de Saúde Pública e Ações Públicas pela Saúde.
Sandrali de Campos Bueno
Quero
antes cumprimentar a Comissão Organizadora deste encontro e agradecer,
especialmente a companheira Regina Nogueira pelo esforço e garra em apostar na
capacidade organizativa das mulheres negras. Sinto-me gratificada em poder partilhar,
neste painel, da sabedoria negra de Matilde Ribeiro cuja trajetória no
Movimento de Mulheres e no Movimento Negro, indiscutivelmente, tem alicerçado a
nossa luta em busca de direitos e da liberdade para mulheres e homens da
comunidade negra; feliz por poder dividir o tema Saúde Mental com a colega
Carmem Oliveira que tem transcendido a ciência na busca de condições dignas na
construção de políticas públicas de saúde integral para toda cidadã, todo
cidadão deste País; interessada em poder extrair do legado da medicina a questão
da sexualidade e saúde abordada pela companheira Elizabeth Zerwes a quem tenho
o prazer de estar ao lado esta mesa; orgulhosa em poder transmitir que nesta
semana foi criado, em Porto Alegre, através de lei, o Comitê de Estudos e
Combate da Mortalidade Materna, tema que também vem sendo estudado pelo Centro
de Pesquisas da Universidade Federal de Pelotas. A par de todos estes
sentimentos, estou muito emocionada em poder fazer, deste momento, um momento
de produção coletiva, de esperança e de desejo de desvendar, com cada uma de
vocês, o mistério onde reside o processo de tornar-se mulher negra; ou, quem
sabe, negra mulher
Ao me debruçar sobre o tema que me coube,
neste painel, fui desafiada a enfocá-lo a partir da questão da identidade da
mulher negra, que por sinal é algo que venho trabalhando, mas sempre me sinto
como alguém em busca da decifração de um mistério que transcende as teorias do
Movimento Feminista e as bandeiras do Movimento Negro.
E lá estava eu com uma pilha de livros
sobre a construção da identidade do ser mulher. Li Freud, Reich, Lacan, Melanie
Klein, Simone de Beauvoir, Marilena Chauí, Marta Suplicy, Focault, Roberto da
Matta, Lya Luft, Mariom Zimmer, Winnie Mandela e continuava na minha maratona
bibliográfica, buscando ampliar o leque de informações com as quais eu
pretendia elaborar algo que fosse consistente do ponto de vista do discurso a
ser dividido com vocês. Mas algo me impedia de escrever embora permanecesse com
a caneta à disposição.
De repente meu olhar pousou sobre o
“folder” que anunciava o nosso encontro e imediatamente me veio, à mente, uma
frase de Martha Suplicy, citada no livro de Reolina S. Cardoso (1994, p.16):
“às vezes é mais importante você falar da própria experiência do que falar do
que leu nos livros”.
Naquele momento, decidi não falar do discurso
sobre a construção da identidade da mulher negra, discurso que tem se
vampirizado e fragmentado nossa energia, nossa sensação, nosso prazer e até
mesmo nossa dor, para nos manter caladas impedindo, muitas vezes o desvelamento
dos mecanismos que mascaram os conflitos em nome do equilíbrio do poder
instituído que é patriarcal e branco.
E aí é um bom lugar para começar nosso
questionamento. E pretendo fazê-lo com a emoção de uma mulher negra, ou seja, a
partir da situação cultural, social e estrutural que tem nos impossibilitado de
visualizar o problema das relações assimétricas, desiguais que estão contidas
na dimensão mais profunda e estruturante da personalidade dos seres humanos, ou
seja, a estruturação do Sujeito, a construção do Eu.
Como
não vou me deter no discurso, convido-as, a observarem com transparência, ou
seja, “além da aparência”, visualizando e sentindo a representação simbólica
que esta colocada no “folder” do nosso encontro: Encontro Estadual Mulher,
Saúde, Sexualidade e Raça.
São
duas figuras de mulheres. A figura da esquerda representa uma mulher branca; a
da direita uma mulher negra. Pois bem, a mulher branca está identificada numa
postura de avanço; ela está à frente, abre caminho com a mão esquerda e está a
um passo à frente. Olha a frente com decisão e estende a mão direita para
mulher identificada como negra, que é puxada, que olha para cima como se
estivesse sendo conduzida pela tenacidade da mulher branca, mas sem olhar a
frente, conduzida “a reboque”. Ora, se a construção do movimento é coletiva e
eu assim acredito, as mulheres negras estão, no mínimo, lado a lado, embora nem
o movimento feminista, nem o movimento negro consigam traduzir a fala da mulher
negra e por isto estamos num processo de forjar nosso próprio conceito.
Muito
mais poderíamos examinar através deste “olhar além”, mas creio que já estamos
mobilizadas o suficiente para abordar o processo de identidade da mulher negra
como algo que deva ser discutido com profundidade, tendo presente o problema
das relações e dos fatos existentes na nossa realidade social, cultural e
estruturalmente constituída. Constituição esta que tem nos impossibilitado de
visualizarmos, mesmo que inconscientemente, a assimetria e a desigualdade que
estão presentes no âmago das nossas relações contextualizadas numa sociedade patriarcal
e branca.
Para tal fundamentarei minha exposição nos
livros “Desejo de Mulher”, de Selene Kepler e “É uma Mulher”, de Reolina S.
Cardoso, fazendo uma releitura e analisando dados do cotidiano sob a ótica da
mulher negra e privilegiando o lugar onde se encontra essa mulher.
Tomarei como referencia três citações
acerca do processo de construção de identidade do Eu:
1-
o processo de construção de identidade, para qualquer pessoa, inicia a partir
da realidade concreta de seu próprio corpo:
2-
o amadurecimento da identidade do Eu é um processo que só se estabelece a
partir da relação com o Não-Eu;
3-
a condição de tornar-se mulher e, neste caso, uma mulher negra pressupõe o
confronto dos aspectos individuais e sociais com os estereótipos construídos a
partir de modelos expressados numa sociedade patriarcal e branca.
Ora, a conscientização do próprio corpo
determina uma das primeiras, senão a primeira, representações simbólicas a
serem interiorizadas pelo ser humano; entretanto o investimento afetivo da
mulher negra em seu próprio corpo se realiza em contraposição a um modelo
construído desfavoravelmente aos seus iguais. Explicitando; ao se identificar,
o bebê se vê no olhar da mãe que tem a função de enlaçar e espelhar sendo que,
através desse processo dinâmico, vão se estabelecendo representações intra e
interpsíquicas que culminarão com a identificação do Eu; a criança negra
interiorizará uma imagem de si mesma que se refletirá, posteriormente, num
espelho social que não lhe dá retorno positivo, através do qual possa
dimensionar e solucionar seus conflitos na construção de sua subjetividade. Isto acrescido da condição de estar num corpo
de mulher leva a uma contradição básica de não se identificar através de seu
corpo, mas sim da adequação a um modelo gerado por uma invisibilidade socialmente
construída e a serviço do poder ideológico da superioridade masculina e branca.
Essa invisibilidade da mulher negra (e
também do homem negro) tem a função de estruturante negativo na construção da
subjetividade negra, pois como refere Reolina Cardoso, as vivencias não estão
contidas dentro de nós, mas se manifestam relacionadas ao contexto ambiental,
situacional e pessoal que encontramos ou que imaginamos. Portanto essa ausência
de espelho identificatórios, no cotidiano social brasileiro, dificulta a
construção da identidade do Eu da mulher negra. Tudo isso se expressa na
concretude do cotidiano da mulher negra, através dos estereótipos construídos
pelo que o Outro deseja ou quer, relacionados com os aspectos preconceituosos e
discriminatórios que impossibilitam a visualização da conexão entre a
singularidade e o condicionamento histórico, entre as subjetividades e o coletivo,
entre as diferenças e as desigualdades.
Ao tentar desvelar um pouco desse mistério
da subjetividade da mulher negra, muito mais poderíamos abordar. Porem, meu
desejo de mulher negra também é circunscrito como uma angustiosa esperança onde
nossa radicalidade se imponha solidariamente, numa troca construtiva de saberes
e vivencias. E que essa solidariedade se expresse na busca de políticas públicas
ofensivas que criem mecanismos de sustentação e enraizamento de espaços de
reflexão estratégicos e táticas de intervenção qualificada que transcendam o
senso comum e tenham uma abrangência organizativa, incluindo mulheres negras e brancas,
na construção e ampliação do conceito de igualdade.
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Referência bibliográfica:
CARDOSO, Reolina S. ET alii. É uma
Mulher. Petrópolis, Vozes, 1994.
KEPLER, Selene Ribeiro. Desejo de
Mulher. Petrópolis, Vozes, 1994.
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