Roteiro da fala proferida no Seminário “O Negro e a
Educação”, no Encontro de Cultura Negra, realizado em Porto Alegre, de 20 a 30
de novembro de 1990.
Sandrali de Campos Bueno
Falar sobre a criança negra e o adolescente negro pressupõe um leque
imenso de possibilidades de abordar o assunto, pois o tema “infância e
adolescência” traz em seu bojo um sentido de totalidade, ou seja, não podemos subdividir
em especificidades, em áreas compartimentadas do conhecimento, sem correr o
risco de cairmos numa visão dicotômica do ser humano.
No entanto, mesmo correndo esse
risco, por uma questão didática, e pelo tempo disponível que temos de reflexão,
neste encontro, é necessário que delimitemos o campo e, portanto, pinçaremos
alguns aspectos que nos parecem significativos frente à possibilidade de uma
reflexão conjunta
Dentro disto, temos um pano de fundo que é a criança e o adolescente e
neste quadro é que iremos enfocar a criança negra e o adolescente negro, ou
seja, nossas crianças, nossos
adolescentes: a vivência, a conduta, o desenvolvimento, os desejos, as
ansiedades, os conflitos, a educação. Este é o tema central deste debate e,
portanto, nosso referencial.
Partindo deste referencial, enfocarei
duas situações, sendo que cada uma constitui um grupo que não faz parte deste
nosso quadro e que estão a margem, mas faze parte da sociedade, da população
negra brasileira: a primeira trata-se da questão da adoção de crianças negras;
a segunda é a questão das crianças e adolescentes negros que se encontram em “situação
de risco social”.
Talvez alguns dos aqui presentes tenham passado, ou conhece alguém que
tenha passado, pela experiência de adotar uma criança. A burocracia, as
entrevistas, são massacrantes, quando não discriminatórias, passando pela renda
familiar, condições psicológicas, etc., etc... Por outro lado, é passado ao
publico que as instituições estão repletas de crianças a serem adotadas e não são
encontrados pais adotivos ou então que só há colocação para crianças do sexo
feminino de preferência de olhos azuis, sendo que as crianças negras ficam nas
instituições esperando para serem adotadas a não ser que tenham a sorte de
serem adotadas por famílias estrangeiras.
Considero isto um mito: primeiro
porque na maioria dos casos não e considerado a disponibilidade afetiva das
famílias negras e sim a questão econômica. Ora, todos sabem que na grande maioria,
as famílias negras não apresentam um poder aquisitivo que lhes possibilitem
arcar com as despesas de mais filhos, embora muitas delas estiverem disponíveis
a adotar, pois faz parte do referencial histórico e afetivo do povo negro ter
família numerosa. Outra questão a ser levantada é adoção para familias
estrangeiras, sendo que as crianças são adotadas “sem qualquer preconceito”, ou
seja, os casais estrangeiros não discriminam quando querem adotar uma criança
brasileira. Aqui reforço meu questionamento: tem a ver com a construção de
identidade, a desvinculação da nacionalidade, da cultura, das raízes destas
crianças. Como se processa internamente o referencial desta criança negra, num
pais de primeiro mundo sim, mas sem nenhuma possibilidade de referência de
ancestralidade?
Quando
falo em mito, refiro-me a questão político-social, pois acredito que se o
Brasil tivesse uma política de adoção de crianças negras ou brancas, em que o
Estado se comprometesse em manter seus filhos em solo brasileiro, se defendesse
o direito dos que aqui nascem de terem no mínimo respeitado sua condição de
brasileiro, haveria mecanismos e instrumentos sociais que possibilitassem que
famílias negras brasileiras, que casais negros, adotassem crianças negras, como
por exemplo, só para citar uma proposta, se o Estado se comprometesse em subsidiar
a educação, saúde e o desenvolvimento dessas crianças. Temos muitas famílias
negras disponíveis afetivamente para receber em seu seio, crianças adotivas: o
que não temos são famílias negras com disponibilidade econômica para manter com
dignidade os seus próprios filhos.
Crianças e adolescentes em situação de risco.
O que isto significa? Que grupo social é este? Define-se que criança e
adolescente em situação de risco social são aqueles que vivem nas ruas, que
estão excluídos, que não tem acesso a escola, a saúde, a alimentação, que
“ameaçam’ a lei e a ordem estabelecidas. Que a maioria deles são negros, não
resta duvida, porque nos deparamos com eles diariamente. Estão aí na nossa
cara! Bem, este grupo em geral tidos como meninos e meninas de rua, ao serem
olhados pela ótica da cultura dominante, são tidos como um grupo desviante, com
estando a margem, como excluídos e por ai... minha pergunta é: como são vistos
pela comunidade negra, pela sociedade negra? Qual a concepção que cada um de
nos, negros e negras trabalhadores, politizados, militantes, intelectuais temos
frente a esta questão? Será que também reproduzimos a mesma relação que a
sociedade branca, dominante tem para
com eles? Até que ponto não temos a mesma postura daquelas pessoas, que ao se
depararem, por exemplo, no supermercado, com um adolescente negro, mal vestido,
sujo, pressupõe que ele seja ladrão, trombadinha ou qualquer rótulo? Penso que
é preciso refletir não só tendo por base o novo discurso de transformação
social, mas antes de tudo refletir partindo das nossas relações, da forma como
se dão essas relações, ou então corremos o risco de continuar discutindo ,
fazendo elaborações teóricas, mas sem qualquer possibilidade de mudanças efetivas
na vida das pessoas, na vida da maioria da população negra deste pais.