Sandrali de Campos Bueno
Ao cumprimentar a mesa e as
organizadoras deste encontro, quero agradecer a oportunidade de compartilhar,
com cada um e cada uma de vocês, aqui presentes, a minha abordagem em torno do
tema Direitos Humanos das Populações em
Situação de Vulnerabilidade Social e poder fazer deste momento um
reconciliamento com a minha cidade e com a minha trajetória de luta cotidiana,
pela superação das desigualdades e de toda discriminação, disfarçada ou
ostensiva, versus o discurso de desqualificação do fazer do servidor público
que, com seu trabalho, construiu o espaço onde hoje se constroem diretrizes
ditas inovadoras. E aqui falo enquanto trabalhadora social, cuja trajetória
profissional foi forjada na luta pela garantia dos direitos para todos,
especialmente, às crianças e aos adolescentes ou àqueles e àquelas que ocupam o
lugar da invisibilidade social, econômica ou afetiva, ou àqueles e àquelas que
não conseguem expressar seu desejo de forma não infratora, ou àqueles e àquelas
que ocupam o espaço de exclusão que lhes foi legado por uma sociedade que
repudia o que tem de melhor: a capacidade de tornar-se livre, justa e solidária
para com todos.
Antes
de tecer minhas considerações, quero contar-lhes uma lenda que me foi contada e
cujo autor desconheço: no Princípio, havia uma deusa poderosa, portadora da
Verdade. Certo dia, ela resolveu, num gesto de bondade, jogar a Verdade sobre a
Terra e, quando isto aconteceu, a Verdade se fragmentou em milhares de pedaços.
Cada ser humano, ao recolher uma pequena porção, disse a si mesmo: eis aqui a
verdade, eu a tenho. Pois bem. Muito se fala em direitos humanos, em cidadania,
em violência, em segurança publica, em redução da maioridade e cada
especialista, cada pessoa, expressa seu saber, sua experiência, sua opinião a
respeito do tema,nem sempre se dando conta que tem apenas uma
parte da verdade. Então, que eu me dê conta, também, que ao explicitar minhas
concepções, estas são apenas parte da verdade e se, por vezes, parecer-lhes a
verdade toda é apenas para reforçar aquilo que penso deva ser ressaltado no
preenchimento de uma laguna no atendimento às crianças e aos adolescentes em
situação de vulnerabilidade e risco social; é apenas para reforçar o traço
daquilo que me parece ser a essência de minha contribuição neste encontro de
saberes interdisciplinares; é apenas um alerta para uma visão mais ampla acerca
do desafio de enfrentar os problemas cruciais que envolvem a infância e a
juventude brasileiras, especialmente as crianças e jovens negros e negras.
O trabalho com crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco social é difícil e
doloroso, mas, ao mesmo tempo, fascinante e estimulante. Difícil porque vivemos
numa sociedade que ainda não dá conta de suas crianças e adolescentes; que
ainda expulsa criança da escola; que ainda permite que adolescentes seja
ceifados da vida, através das drogas; que ainda não tem sido eficaz no combate
à exploração de meninos e meninas; que mascara os efeitos da desigualdade e das
violências, estruturalmente construídas, desde a época colonial, atingindo,
principalmente, a população negra. Doloroso porque estamos sofrendo, na carne e
na alma, os efeitos dos erros cometidos e acumulados neste quinhentos anos de
atendimento às crianças e aos adolescentes das classes populares. Fascinante
porque temos a possibilidade de reverter esses erros e transformar essas dores
em energia criativa na busca de soluções inovadoras e ousadas, como
protagonistas da mudança e não como objeto de pesquisa e de programas
compensatórios. Estimulante porque muito há para fazer e, em "época de planetarização, o futuro se
apresenta como um espaço de co-responsabilidade e interdependência, onde cada
criança, cada adolescente possa expressar sua plenitude enquanto ser humano,
sujeito de direito, especialmente, direito de crescer dentro de um espírito de
solidariedade, numa sociedade justa e fraterna."
Há sessenta anos, a
Assembléia Geral das Nações Unidas, através da Resolução nº217, no dia 10 de
dezembro de 1948, assinava a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
definindo os princípios morais e éticos que devem orientar os povos das Nações
Unidas, devendo ser adotados por todos os países democráticos. Embora o Brasil
seja signatário dessa importante e histórica Declaração, o conhecimento dos
direitos humanos ainda é muito limitado e nem sempre esses direitos são
observados pelo Estado e pela Sociedade em geral. O próprio significado da
noção de direitos humanos tem sido desgastado através da ação contínua daqueles
que confundem o respeito aos direitos humanos com apologia à criminalidade e à
impunidade, numa tentativa de desqualificar as ações de movimentos sociais ou,
até mesmo, deslegitimar a trajetória de luta política em defesa dos direitos
humanos, muitas vezes justificando dispositivos e mecanismos de extermínio da
população jovem e de baixa renda.
Embora todo ser humano seja
titular de direitos, historicamente, determinados grupos sociais têm sofrido
discriminações brutais e incompatíveis com os ideais expressos na Declaração
dos Direitos Humanos, mas que, no entanto, são mascaradas pelo discurso de
igualdade para todos, em todo e qualquer espaço social, ou seja, um discurso que
provem da noção de cidadania, enquanto identidade social de caráter nivelador,
horizontal e igualitário. Porem, na pratica, no Brasil. Onde a inserção social
se dá a partir de uma rede de realizações que ratifica as desigualdades e
sustenta o poder político e econômico, a grande maioria da população não se
sente como protagonista das transformações e sujeito de direitos. E essa grande
maioria tem cor e gênero.
Fala-se muito em aumento de
violência e da criminalidade no Brasil. Mas a maior violência, está estruturada
na sociedade brasileira: a violência e o crime causados pela discriminação
racial, mascarados pelo mito da igualdade de oportunidade para todos. Senão,
vejamos: a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial, de dezembro de 1963, Resolução nº 1904, ratificada
pelo Brasil em 22 de março de 1968, afirma no seu Art.1º § 2 deve o Estado
tomar medidas especiais e concretas para certos grupos étnicos ou de indivíduos
pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de
igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais.
E, são a partir destes
princípios, que se definem as ações afirmativas, como, por exemplo, as cotas
nas universidades publicas: ação concreta do Estado.
A Declaração dos Direitos
da Criança aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro
de 1959, da qual o Brasil é signatário, assinala que a "criança em virtude
de sua falta de maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidados
especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu
nascimento, e ainda reconhece que em todos os países do mundo existem crianças
vivendo sob condições excepcionalmente difíceis e que essas crianças necessitam
consideração especial." Ora, todos sabemos que a necessidade de proteção e
cuidados às nossas crianças são, antes de tudo, necessidades que se
transformaram em direitos e, mesmo assim, ainda são violados em pleno século
XXI, pois embora a sociedade mundial tenha atingido alto nível de avanço
tecnológico, ainda não conseguiu erradicar a fome, a miséria, as discriminações
e as desigualdades socialmente induzidas.
Embora o Artigo 227 da
Constituição de 5 de outubro de 1988 tenha aberto as portas para uma
transformação na condição sócio-juridica da infância e da juventude
brasileiras, o processo de resgate e construção da dignidade das crianças e
adolescentes negros e negras ainda necessita ser fortalecido enquanto "construto
político e ético" delineado por um conjunto de medidas capazes de garantir
o exercício de direitos, de romper com o racismo, com a discriminação e que,
concretamente, garanta um futuro mais justo para comunidade negra,
conseqüentemente para a maioria da população em situação de vulnerabilidade
social.
A Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente,
resultado exitoso do entrelaçamento do movimento social, das políticas e do
mundo jurídico, substituindo o Código de Menores, de 10 de outubro de 1979,
expressa a maior conquista em favor da infância e da juventude brasileiras e
tem três princípios básicos:
- a
criança e o adolescente são sujeitos de direito;
- para
tudo deve ser levada em conta sua condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento;
-seus
direitos têm absoluta prioridade.
Isto está posto e garantido
em lei: como cidadãos e trabalhadores sociais têm-se a proposta pessoal de
defender e colocar na pratica esses princípios. Mas o desafio maior está na
superação das dificuldades históricas e contextuais que impedem a transposição
do campo da defesa das idéias para o campo da concretude, campo da realização.
Mesmo o Estatuto sendo o reflexo da atitude media dos brasileiros no que diz
respeito aos direitos das crianças e dos adolescentes, nem por isso agrada a
todos os cidadãos que devem aplicá-lo e, muitas vezes, se estabelece no senso
comum da sociedade a idéia deturpada de que lhes foi concedido o direito de
agir impunemente e que a lei é falha. Ora, se alguma coisa não funciona na
garantia de direitos da criança e do adolescente, a falha não é do Estatuto,
pois "a lei não define a prática social, mas ao contrário, a prática
social determina a aplicação da lei." Como refere Edson Seda, o Estatuto é
uma regra e regra nunca falha. Falha-se quando ela não é aplicada, quando não
se faz valer e quando os que devem aplicá-la não a aplicam, bem como se não for
aperfeiçoada tão logo isso se fizer necessário.
O Estatuto da Criança e do
Adolescente é uma ferramenta de trabalho que nos autoriza a sermos ousados na
luta em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes brasileiros. Mas
vejamos: o discurso que está contido na Lei parte da premissa de que todas as
crianças e todos os adolescentes são iguais. Porem, na prática, a quem se
destina a Lei? Às crianças e aos adolescentes das classes populares, àqueles e
àquelas que, segundo Roberto Da Matta, não conseguem responder a pergunta
ritualística brasileira: "afinal de contas, quem é você?" Pois bem. A
atuação garantista, de pessoas, organizações, Poder Publico, na promoção e
defesa dos direitos da criança e do adolescente é algo recente no campo das
lutas sociais. Mas o problema da discriminação racial é algo que permeia e
transcende a própria constituição da sociedade brasileira, enquanto nação
livre; portanto a cidadania às crianças e aos adolescentes negros e negras
resulta de um processo que se explicita na sua diferenciação, enquanto processo
histórico, cultural e estrutural. E daí, não é difícil entender porque a
crianças e os adolescentes negros e negras são mais vulneráveis, do ponto de
vista social, do que as demais crianças e os demais adolescentes. Não é difícil
entender porque os efeitos das desigualdades sociais recaem, sobretudo, na
população negra, atingindo e comprometendo o futuro das crianças e adolescentes
negros e negras. Não é difícil entender porque não se criam espaços permanentes
de capacitação de conselheiros e conselheiras tutelares, com enfoque na
equidade racial e étnica, se este é o problema crucial da sociedade brasileira;
não é difícil entender porque não se cumpre a Lei que dispõe sobre o ensino da
História da África e dos heróis nacionais negros como Zumbi e outros. Não é
difícil entender o porquê da desvitalizarão da esfera publica, das
privatizações, das terceirizações no atendimento às crianças e aos
adolescentes, mesmo sabendo que estes mecanismos refletirão crucialmente na
qualidade de vida da população, da comunidade negra; não é difícil entender
porque da negligencia a respeito da infraestrutura dos espaços públicos, uma vez
que isto reflete, caoticamente, na população negra; não é difícil entender
porque não se investem na qualificação da saúde publica e na pesquisa, estudo e
capacitação no atendimento dos portadores da doença falciforme.
Mas toda denuncia pressupõe
um anúncio. E se, como afirmei no início, estas considerações são apenas parte
da verdade, entendo que a verdade toda deva ser construída na intersecção da
verdade de cada um e de cada uma. Entretanto, deixo algumas propostas, visando
uma intervenção que se legitime através da ação cotidiana, protagonizada por
todos e por todas envolvidos na defesa dos direitos das crianças e dos
adolescentes, em situação de vulnerabilidade, como:
-
criação de espaço permanente de formação em direitos humanos com enfoque
étnico/racial, com objetivo de promover o aprendizado dos processos estruturais
e institucionais que desfiguram, deformam e devastam a comunidade negra;
- busca
por políticas publicas ofensivas que criem mecanismos de sustentação e
enraizamento de espaços de reflexão e de intervenção qualificada nas questões
étnico-raciais, envolvendo crianças e adolescentes.
-
praticas que tenham uma abrangência organizativa, comprometidas com a mudança
social para todos e todas, garantindo o bem-estar das crianças e adolescentes
brasileiros.
______________________________________________________
Referência
Bibliográfica:
1.
MARTINELLI, Marillu. Ser é Ensinar. Programa de Educação para a Paz.
2.
INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇAO AOS DIREITOS HUMANOS. CEPIA, Rio de
Janeiro, set. 2001.
3.
CONVENÇAO DAS NAÇOES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA. UNICEF.
4.
BUENO, Sandrali de Campos. Se falhar, o que fazer? Considerações a respeito do
atendimento de crianças e adolescentes. Revista Comemorativa AFUFE, maio, 1993,
pag. 30-31.
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