Discurso proferido por Sandrali de Campos Bueno, na
cerimônia de colação de grau de Psicólogo,
Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – UNISINOS, em 10 de agosto de 1984.
Exmo. Prof. Jose Marculano, Superintendente Acadêmico, Exmo. Prof. Carlos
Alberto Wieck, Diretor do Centro de Ciências Biomédicas, Caríssima Psicóloga
Maria Luiza Becker, Coordenadora do Departamento de Psicologia, Querida
Paraninfa, Psicóloga Maria Luiza Santos Oliveira, queridos homenageados,
caríssimos professores, queridas colegas, prezados familiares, amigos.
Nós, formandas em
Psicologia, estamos, nesta data, assumindo, publicamente, a concepção de que
hoje é o dia mais importante e significativo, na árdua caminhada em busca do
grau de psicólogo.
As pessoas, aqui presentes, não são
apenas convidadas: são nossos verdadeiros amigos, aqueles que compartilharam
das nossas dificuldades, das nossas vitórias, da luta para chegarmos até aqui e
sabem o quanto esse momento está representando em nossas vidas.
Durante o período em que estivemos
nessa universidade, passamos por etapas de aprendizagem que implicaram na
reflexão sobre a nossa própria ação em termos de formação profissional e de
conscientização do nosso papel na sociedade como pessoa, como mulher, como profissional.
No inicio do curso, nossa
identificação era um número de matrícula, um numero que nos colocava em pé de
igualdade com todos nossos colegas universitários. A ideia inicial era mágica e nos deslumbrava.
Tínhamos conquistado um espaço no tão sonhado curso universitário; tínhamos
conseguido ultrapassar os condicionamentos de uma sociedade que ainda mantém
obstáculos de acesso da mulher a certas funções consideradas privilégios
masculinos.
Porem, não tínhamos claro o que
tudo isto representava; o que exigiria de cada uma de nós, o que exigiria dos
nossos pais, dos nossos maridos, do nosso filho, dos noivos, dos namorados, dos
nossos amigos.
Éramos egocêntricas. Egocêntricas como
a criança que vê o mundo apenas como satisfação de seus desejos. As
contradições, os conflitos, as atribuições, os momentos alegres, tudo era
percebido fora de nós. Em nossa expectativa, ou quem sabe, inexperiência, tentávamos nos identificar e introjetávamos
tudo que um curso exigia: leituras, trabalhos, debates, seminários,
estereótipos... Ah! Os estereótipos, as rotulações... Éramos estudantes de
Psicologia e, como tal, tínhamos que manter uma, pois nos impunham um papel que
nos tirava o direito de sofrer, de errar, de ter emoções. Vivíamos como figuras
irreais. E o que fazíamos? Bem, nós estávamos deslumbradas e, portanto, assumíamos
este papel sem questioná-lo... E fomos um pouco de tudo; fomos aprendizes,
colegas, amigas, acirradas competidoras e, algumas vezes, sendo interpretadas
em sala de aula, outras vezes, interpretando.
Mas este deslumbramento inicial foi
dando lugar à crítica. Nos não estávamos sozinhas nesta caminhada; não éramos
deusas, nem mistério, éramos todas em busca da mesma causa: “a libertação do
indivíduo, tirando-o da alienação de todos os ditames da opressão”. Nós também estávamos
oprimidas: oprimidas pela visão do outro que nos considerava diferentes,
oprimidas pelas rotulações, oprimidas pela dúvida, pela ambivalência, pelo medo
de nos envolvermos emocionalmente, de aceitarmos nossas limitações, de nos
posicionarmos como indivíduos, como pessoas reais.
E vieram os gastos e os desgastes com
a nossa formação: livros, ‘xerox’, transporte, lanches, pensionato de algumas,
matrículas financiadas... E vieram os momentos de oscilações de humor, as
trocas das festas por aquele trabalho de ultima hora, as nossas ausências do
convívio familiar em consequência daquele trabalho feito em grupo nas
bibliotecas, as buscas competitivas
pelos locais de estágio, na pretensão de adquirirmos um modelo no
processo de identificação com a nossa profissão . Mas, também veio o apelo
interno: o apelo para nos tornarmos autênticas, conscientes de que dentro de
nos haviam coisas a serem desenvolvidas. Veio o sentimento de saber que
teríamos que ir adiante e, neste momento, fomos auxiliadas pela vivência com
aqueles professores que se mostraram modelos profissionais, sim, mas acima de
tudo, pessoas presentes e reais, hoje, aqui representadas pelos participantes
dessa mesa de homenageados.
E, com tudo isso veio os
questionamentos, a ansiedade. A ansiedade frente a nossa visão critica frente
ao investimento em nossa pessoa como ser humano, como cidadã, como agente de
transformação. Já não era possível voltarmos atrás. Não se tratava apenas se
valia a pena esta corrida pela tão sonhada conclusão do curso. Descobríamos que
a realidade estava dentro de cada uma de nos e começamos a entender que a
estrada mais fértil para nossa formação é o autoconhecimento, é assumirmos
nosso espaço sem deixarmos que outros o assumam por nos, é acreditarmos que
para 'tornar-se psicólogo' é preciso muito mais que 'ser psicólogo'. É preciso
muito mais do que receber um diploma. É preciso aprofundar a própria
experiência de 'tornar-se pessoa', de criticar a si mesma e de estabelecer uma
relação consciente e afetiva com o trabalho e com as demais pessoas. É
acreditar naquilo que nos predispomos a ser como profissionais, como gente. É
lutar pelas eleições diretas, é lutar pela democracia, é entender o momento
político, é refletir sobre o nosso papel na sociedade, é descobrir nossa
identidade e tornar nossa ação profissional uma ação política, assumindo o
risco da opção e tendo a coragem para afirmar-se e dar-se numa relação ativa
com a sociedade.
Hoje estamos conquistando o grau de
psicólogo. Somos treze psicólogas, treze mulheres em busca do nosso espaço como
profissionais. Novamente partimos de um número, um número que nos identifica no
Conselho Regional de Psicologia. Temos consciência de que estamos assumindo um
compromisso com a comunidade. Sabemos que haverá mais dificuldades, mais luta.
Sabemos que nossa profissão é nova e não está madura em termos de comunidade
profissional, que ainda está conquistando seu espaço como classe. Sabemos que
ainda existe um medo de partir para um trabalho que acarrete um investimento
social mais amplo, que torne 'o fazer psicologia' menos fechado e elitista,
mais preventivo e libertador; menos como ação isolada, mais como ação
político-social; menos competitivo mais cooperativo e solidário.
E, por falar em solidariedade, não
poderíamos esquecer um fato significativo: com tantos colegas com os quais
convivemos, hoje, aqui, somos apenas treze. Um número bastante reduzido. Por
isto gostaríamos de dividir este momento e deixar nossa solidariedade para com
os colegas que não conseguiram chegar ate aqui conosco, ou por não terem
conseguido uma vaga nos racionados locais de estágio, ou por não terem
suportado o peso da inflação, ou por não terem conseguido descobrir o real
dentro de si mesmo.
A decisão de 'sermos psicólogas' foi
conseguida através da luta e do esforço para vencermos a contradição do 'ser e
não ser'. Mas, foi precisamente este sentimento de luta, de romper barreiras e
grilhões de opressão que nos levou a refletir sobre o nosso papel e nos levará
a 'tornar-nos psicólogas', a afirmar a devida dignidade dessa profissão como
serviço social, “firmando nossas convicções em nossos próprios meios e experiências e não através de princípios
abstratos. Somos humildes ao visualizar o que anteriormente foi distorcido. E é
esta humildade que aumenta nossa segurança porque deixa a porta aberta para
novas aprendizagens e descobertas futuras.”
Partiremos dessa Universidade para um
trabalho cujo princípio norteador é a aceitação de que o instrumento do
psicólogo é ele mesmo e só é possível aceitar nosso papel no momento em que aceitamos,
dentro de nos, a ideia de que antes de tudo, temos que reconhecer nossas limitações
e não estamos imunes a frustrações.
Partiremos em busca de uma relação
profissional ativa com a comunidade
certas de que não podemos esperar, pois como diz a música de Vandré:
“esperar não é saber, quem sabe faz a hora e não espera acontecer”.
São
Leopoldo, 10 de agosto de 1984.