domingo, 4 de novembro de 2012

Meu discurso de formatura há 28 anos atrás



Discurso  proferido por Sandrali de Campos Bueno, na cerimônia de colação de grau de Psicólogo,  Universidade do  Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, em 10 de agosto de 1984.

Exmo.  Prof. Jose Marculano,  Superintendente Acadêmico, Exmo. Prof. Carlos Alberto Wieck, Diretor do Centro de Ciências Biomédicas, Caríssima Psicóloga Maria Luiza Becker, Coordenadora do Departamento de Psicologia, Querida Paraninfa, Psicóloga Maria Luiza Santos Oliveira, queridos homenageados, caríssimos professores, queridas colegas, prezados familiares, amigos.

            Nós, formandas em Psicologia, estamos, nesta data, assumindo, publicamente, a concepção de que hoje é o dia mais importante e significativo, na árdua caminhada em busca do grau de psicólogo.
          As pessoas, aqui presentes, não são apenas convidadas: são nossos verdadeiros amigos, aqueles que compartilharam das nossas dificuldades, das nossas vitórias, da luta para chegarmos até aqui e sabem o quanto esse momento está representando em nossas vidas.
          Durante o período em que estivemos nessa universidade, passamos por etapas de aprendizagem que implicaram na reflexão sobre a nossa própria ação em termos de formação profissional e de conscientização do nosso papel na sociedade como  pessoa, como mulher, como profissional.
              No inicio do curso, nossa identificação era um número de matrícula, um numero que nos colocava em pé de igualdade com todos nossos colegas universitários.  A ideia inicial era mágica e nos deslumbrava. Tínhamos conquistado um espaço no tão sonhado curso universitário; tínhamos conseguido ultrapassar os condicionamentos de uma sociedade que ainda mantém obstáculos de acesso da mulher a certas funções consideradas privilégios masculinos.
               Porem, não tínhamos claro o que tudo isto representava; o que exigiria de cada uma de nós, o que exigiria dos nossos pais, dos nossos maridos, do nosso filho, dos noivos, dos namorados, dos nossos amigos.
        Éramos egocêntricas. Egocêntricas como a criança que vê o mundo apenas como satisfação de seus desejos. As contradições, os conflitos, as atribuições, os momentos alegres, tudo era percebido fora de nós. Em nossa expectativa, ou quem sabe, inexperiência,  tentávamos nos identificar e introjetávamos tudo que um curso exigia: leituras, trabalhos, debates, seminários, estereótipos... Ah! Os estereótipos, as rotulações... Éramos estudantes de Psicologia e, como tal, tínhamos que manter uma, pois nos impunham um papel que nos tirava o direito de sofrer, de errar, de ter emoções. Vivíamos como figuras irreais. E o que fazíamos? Bem, nós estávamos deslumbradas e, portanto, assumíamos este papel sem questioná-lo... E fomos um pouco de tudo; fomos aprendizes, colegas, amigas, acirradas competidoras e, algumas vezes, sendo interpretadas em sala de aula, outras vezes, interpretando.
          Mas este deslumbramento inicial foi dando lugar à crítica. Nos não estávamos sozinhas nesta caminhada; não éramos deusas, nem mistério, éramos todas em busca da mesma causa: “a libertação do indivíduo, tirando-o da alienação de todos os ditames da opressão”. Nós também estávamos oprimidas: oprimidas pela visão do outro que nos considerava diferentes, oprimidas pelas rotulações, oprimidas pela dúvida, pela ambivalência, pelo medo de nos envolvermos emocionalmente, de aceitarmos nossas limitações, de nos posicionarmos como indivíduos, como pessoas reais.
          E vieram os gastos e os desgastes com a nossa formação: livros, ‘xerox’, transporte, lanches, pensionato de algumas, matrículas financiadas... E vieram os momentos de oscilações de humor, as trocas das festas por aquele trabalho de ultima hora, as nossas ausências do convívio familiar em consequência daquele trabalho feito em grupo nas bibliotecas, as buscas competitivas  pelos locais de estágio, na pretensão de adquirirmos um modelo no processo de identificação com a nossa profissão . Mas, também veio o apelo interno: o apelo para nos tornarmos autênticas, conscientes de que dentro de nos haviam coisas a serem desenvolvidas. Veio o sentimento de saber que teríamos que ir adiante e, neste momento, fomos auxiliadas pela vivência com aqueles professores que se mostraram modelos profissionais, sim, mas acima de tudo, pessoas presentes e reais, hoje, aqui representadas pelos participantes dessa mesa de homenageados.
          E, com tudo isso veio os questionamentos, a ansiedade. A ansiedade frente a nossa visão critica frente ao investimento em nossa pessoa como ser humano, como cidadã, como agente de transformação. Já não era possível voltarmos atrás. Não se tratava apenas se valia a pena esta corrida pela tão sonhada conclusão do curso. Descobríamos que a realidade estava dentro de cada uma de nos e começamos a entender que a estrada mais fértil para nossa formação é o autoconhecimento, é assumirmos nosso espaço sem deixarmos que outros o assumam por nos, é acreditarmos que para 'tornar-se psicólogo' é preciso muito mais que 'ser psicólogo'. É preciso muito mais do que receber um diploma. É preciso aprofundar a própria experiência de 'tornar-se pessoa', de criticar a si mesma e de estabelecer uma relação consciente e afetiva com o trabalho e com as demais pessoas. É acreditar naquilo que nos predispomos a ser como profissionais, como gente. É lutar pelas eleições diretas, é lutar pela democracia, é entender o momento político, é refletir sobre o nosso papel na sociedade, é descobrir nossa identidade e tornar nossa ação profissional uma ação política, assumindo o risco da opção e tendo a coragem para afirmar-se e dar-se numa relação ativa com a sociedade.
          Hoje estamos conquistando o grau de psicólogo. Somos treze psicólogas, treze mulheres em busca do nosso espaço como profissionais. Novamente partimos de um número, um número que nos identifica no Conselho Regional de Psicologia. Temos consciência de que estamos assumindo um compromisso com a comunidade. Sabemos que haverá mais dificuldades, mais luta. Sabemos que nossa profissão é nova e não está madura em termos de comunidade profissional, que ainda está conquistando seu espaço como classe. Sabemos que ainda existe um medo de partir para um trabalho que acarrete um investimento social mais amplo, que torne 'o fazer psicologia' menos fechado e elitista, mais preventivo e libertador; menos como ação isolada, mais como ação político-social; menos competitivo mais cooperativo e solidário.
          E, por falar em solidariedade, não poderíamos esquecer um fato significativo: com tantos colegas com os quais convivemos, hoje, aqui, somos apenas treze. Um número bastante reduzido. Por isto gostaríamos de dividir este momento e deixar nossa solidariedade para com os colegas que não conseguiram chegar ate aqui conosco, ou por não terem conseguido uma vaga nos racionados locais de estágio, ou por não terem suportado o peso da inflação, ou por não terem conseguido descobrir o real dentro de si mesmo.
          A decisão de 'sermos psicólogas' foi conseguida através da luta e do esforço para vencermos a contradição do 'ser e não ser'. Mas, foi precisamente este sentimento de luta, de romper barreiras e grilhões de opressão que nos levou a refletir sobre o nosso papel e nos levará a 'tornar-nos psicólogas', a afirmar a devida dignidade dessa profissão como serviço social, “firmando nossas convicções em nossos próprios  meios e experiências e não através de princípios abstratos. Somos humildes ao visualizar o que anteriormente foi distorcido. E é esta humildade que aumenta nossa segurança porque deixa a porta aberta para novas aprendizagens e descobertas futuras.”
          Partiremos dessa Universidade para um trabalho cujo princípio norteador é a aceitação de que o instrumento do psicólogo é ele mesmo e só é possível aceitar nosso papel no momento em que aceitamos, dentro de nos, a ideia de que antes de tudo, temos que reconhecer nossas limitações e não estamos imunes a frustrações.
          Partiremos em busca de uma relação profissional ativa com a comunidade  certas de que não podemos esperar, pois como diz a música de Vandré: “esperar não é saber, quem sabe faz a hora e não espera acontecer”.
                                                São Leopoldo, 10 de agosto de 1984.

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