SOBRE O IV ENCONTRO NACIONAL MULHERES DE AXÉ:
A Ousadia a Serviço da Coletividade[1]
O
Encontro Nacional Mulheres de Axé, organizado pela Rede Nacional de Religiões
Afro-brasileiras e Saúde, surge a partir da proposição do GT Mulheres de Axé
que tem como coordenação nacional Mãe Nilce de Oyá e Vilma de Oyá. O GT tem como finalidade estimular e fortalecer o
protagonismo das mulheres de terreiro nos espaços de decisão política, tendo
como referência a história das Ialodês e Ialaxés (mulheres africanas e da
tradição religiosa de matriz africana que comandam suas comunidades e as decisões
político-comunitárias). Seus objetivos
são: contribuir para o ativismo das mulheres de terreiros e a ampliação da
participação delas nos espaços de defesa de direitos e controle social de
políticas públicas, – qualificar as informações sobre a Política Nacional
de Saúde da Mulher com ênfase nos direitos sexuais e reprodutivos, –
estimular nos espaços internos e externos aos terreiros o desenvolvimento de
ações de promoção da igualdade de gênero, e de promoção e proteção dos direitos
e da autonomia das mulheres. (www.mulheresaxe.blogspot.com/).
Nossa ousadia começou no último dia do III Encontro
Nacional Mulheres de Axé da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde,
realizado em 09 e 10 de março de 2012, no Rio de Janeiro, quando eu e Nina
Fola, sob o clima da emoção, resolvemos disputar, com outras representantes, a
cidade sede para realização do IV Encontro. Entre as capitais que concorreram
estavam Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte, Rio Branco, Manaus, São Paulo, São
Luís, Alagoas, enfim, o apelo tanto em relação às atrações turísticas quanto
aos aspectos da tradição da matriz africana eram muito fortes. Combinei a
defesa com Nina que rascunhou três argumentos para que eu pudesse elaborar a
fala. Diga-se de passagem, que era minha estréia e as pessoas que me conhecem
sabem que não sou dada a competições (prefiro os consensos). Bem, apesar de
sermos o Estado onde as pessoas mais se auto-declaram como adeptos da tradição
de matriz africana, (segundo dados do IBGE e FGV), é justamente aqui onde se
verifica alta incidência de situações de intolerância religiosa, machismo,
xenofobia, muitas vezes, estrategicamente, submersas sob o cruel e eficaz véu
de invisibilidade. Contudo, o argumento mais convincente foi em relação ao
trabalho que a RENAFRO Núcleo RS realiza e a luta pelo Estado Laico, (como por
exemplo, a retirada dos símbolos religiosos dos espaços de poder públicos) que
fez com que, por aclamação, a Plenária votasse na cidade de Porto Alegre para
sediar o IV ENCONTRO NACIONAL MULHERES AXÉ. Ter defendido que o Encontro
Nacional fosse realizado em Porto Alegre foi um desafio ao qual sabíamos da
responsabilidade e compromisso com a nossa REDE tão bem construída e conduzida
pelos seus coordenadores. Somos gratas pelo cuidado com que Ogan Marmo e Baba
Diba tem para com esse processo. O reconhecimento do papel das nossas
lideranças nos deu mais força para continuar firme no entendimento de que a
auto-organização das mulheres seria um instrumento essencial para o sucesso do
encontro. Como Baba Diba diz: a Rede
toda é das Mulheres de Axé.
O Rio Grande do Sul tem dado mostras
de sua capacidade organizativa, bem como realizado avanços na construção de
políticas para o Povo de Terreiro e não seria diferente com a organização das
mulheres de axé. O racismo e o machismo são estruturantes do sistema
colonialista e nos atinge de forma muito brutal. O feminismo ocidental não nos
contempla, mas o machismo nos atinge indistintamente e temos poucos recursos
para recorrer em se tratando de protagonismo político, social e econômico. Tudo
isto e muito mais são fios a serem tecidos pelas mulheres de axé da
nossa Rede apoiadas pelo fio condutor das nossas lideranças masculinas para que
juntos possamos vivenciar na concretude da matriz africana os princípios
civilizatórios que nos manteve até aqui fortes e unidos.
Em julho de 2012,
ousamos mais uma vez e realizamos o I ENCONTRO ESTADUAL MULHERES DE AXE, na
cidade de Pelotas. Enfrentar o frio foi o de menos, mas conseguimos realizar um
encontro tímido, sim, mas com a nossa marca, ou seja, ofertando o que de melhor
tínhamos naquele momento e transformando o encontro numa estratégia para a
organização das pautas que queremos e precisamos tratar com todas as mulheres e
homens de axé. Nosso eixo condutor foi: O que é TORNAR-SE MULHER DE AXE? Isto nos conduziu até a realização do
Nacional, principalmente na figura da sempre impecável Nina Fola, cujo
protagonismo como coordenadora expressa a circularidade do poder mítico social
e o respeito pela hierarquia da tradição de matriz africana.
E fomos
caminhando rumo ao IV Encontro: foram muitos os questionamentos, as
preocupações, os cuidados, as idiossincrasias, as indignações, os diálogos, as
trocas de email, enfim o trabalho e a exigência que caracterizam a nossa forma
de realizar eventos, muitas vezes, não correspondiam com as respostas recebidas
ou não recebidas. E muitas vezes nossa indignação foi acolhida pelo nosso
coordenador Baba Diba que nos impulsionou a manifestar nosso sentimento de
forma concreta. Esta postura foi decisiva, principalmente na minha atuação como
uma das coordenadoras e como palestrante, considerando desde a importância da
entrega do presente das Águas, como uma característica dos eventos realizados
no Rio Grande do Sul (afinal o encontro era de mulheres e, portanto o presente
para as Yabás era questão prioritária) até o compartilhamento da mesa na
Conversa de Axé que tratava da violência contra as mulheres. Mas também foi a
boa provocação de Ogan Marmo que fez o diferencial na minha apresentação ao
responder uma mensagem: “Mãe Sandrali precisamos ousar e contamos com a
senhora: ouse!”
E daí mais uma ousadia,
a ousadia na fala amorosa que se pretende curadora: uma fala não sobre o que
penso da violência, mas sim sobre a dor causada pela violência, pela
intolerância, pelo sexismo, pelo machismo, pela lesbofobia. Uma fala não da
psicóloga, da especialista em criminologia, mas um relato real na fala de uma
mãe de santo que se coloca no lugar de filha para poder dar voz ao sofrimento
com o objetivo de criar uma estratégia amorosa no processo de cura através do
compartilhamento e acolhimento que só o coletivo pode propiciar. A experiência
foi incomparável e o que recebi em retorno justifica a situação de exposição em
que me coloquei. Alguém me disse que fui muito corajosa. Não. Eu apenas ousei.
Ousei pelo único objetivo
de não calar diante da dor de muitas mulheres que continuam a mercê da
violência estrutural do Estado brasileiro. Ousei porque não queremos ser
adornos ou espectadoras. Ousei
porque apesar dos avanços da Rede nós precisamos avançar muito mais; ousei porque
rede se enlaça, se estende e se deixa tecer coletivamente; ousei porque
queremos construir com todos e todas, mas especialmente com as mulheres do
povo, queremos mudar o discurso que tem sido branco e patriarcal. Queremos
muito mais ouvir do que falar, pois é através da fala das nossas Iyás (mais
velhas ou mais novas), da fidelidade à tradição e do protagonismo individual e
coletivo que construiremos políticas capazes de mudar a realidade e as
condições em que vivem a maioria das mulheres a quem a violência, a
discriminação e as intolerâncias mais atingem. Ousei porque queremos que cada
mulher se enxergue na outra e que suas falas sejam reais, queremos que cada
encontro se transforme em espaço de fala estruturado por nós mesmos e que
possamos construir e protagonizar a mudança; ousei porque, em se tratando de
expressão do poder feminino, pauto-me pela circularidade e pela conscientização
de que somente na Unidade e no compartilhamento de saberes, de sentimentos, de
emoções é que temos a força e a racionalidade para alcançar nosso objetivo.
Asé,
nguzo, mooyo, saravá.
Iyá
Sandrali de Oxum
Coordenadora
Estadual do GTMulheres de Axé
RENAFRO/RS
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