domingo, 15 de dezembro de 2013

Mãe, a rainha do clube é branca! 1
Por Sandrali de Campos Bueno


Há algum tempo atrás recebi essa mensagem de minha filha que ao ir ao almoço de um clube social tradicional de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, teve esta constatação: a rainha do clube é branca.
Bem, numa sociedade multi-étnica, como é a brasileira, não seria motivo de estranheza que a rainha de um clube social fosse branca, negra, índia, cigana, enfim... Mas, em se tratando, de uma sociedade onde o preconceito racial é cruelmente dirigido aos negros e negras, independente da classe social, é de se estranhar que a rainha de um clube social negro seja branca, principalmente de um clube social negro de uma cidade do interior do estado. Espaço social negro de uma cidade onde as marcas do colonialismo escravocrata estão incrustados nas paredes das mansões que ainda preservam espaços onde a dignidade de uma civilização era diariamente ultrajada;de uma cidade que prosperou graças ao comércio da carne salgada,pelas mãos dos trabalhadores negros,cujo conhecimento,sabedoria e religiosidade transformaram a carne amarga,do gado maltratado, em alimento sagrado e compartilhado com o ser humano; das estâncias às margens do arroio cujas águas, outrora , misturaram-se ao sangue dos negros escravizados; sangue, suor e lágrimas que também serviram para regar flores, frutas e orvalho dos jardins e pomares onde as senhorinhas passeavam; nas calçadas das ruas que, acerca de cem anos atrás, dividia-se em espaços distintos e demarcados pelo preconceito , discriminação e racismo:onde branco andava, negro não podia pisar;de clubes sociais com rainhas, princesas e princesinhas, duquesas e duquesinhas que mantem a tradição europeia,de rendas e brocados,na ilusão de que o espaço privado é mais importante que o espaço coletivo do exercício da cidadania.
Sempre que faço alguma consideração a respeito de um tema ou de uma situação, costumo fazer uma referência a uma lenda que diz que quando a Verdade foi jogada sobre a terra, ela se esfacelou em vários pedaços e, cada um, ao pegar um pedaço disse: eis aqui a verdade, eu a tenho. Bem,ao tentar explicitar o que penso a respeito do que levaria um clube social negro abrir mão de uma rainha negra, eu estou trazendo uma parte da verdade. Certamente outros terão seus pedaços de verdade ou para se somarem à minha ou para contrapô-la. Mas como mulher negra, militante, mãe de duas mulheres negras não poderia me omitir frente à constatação de uma jovem negra.
O que significa esta constatação para uma jovem negra de vinte e três anos? Uma jovem que forjou sua identidade, desde a infância ouvindo e vivenciando sua negritude em todos os aspectos que envolvem a construção da subjetividade de uma mulher negra, numa sociedade preconceituosa, racista, machista e onde o modelo de beleza é ditado pela estética da mulher branca?
Respondo com outra pergunta: como fica a autoestima das meninas e adolescentes negras ao se verem representadas por uma moça branca? Mais uma vez se sentem invisibilizadas, pois o padrão escolhido nada tem a ver com seus cabelos crespos, com sua cor de pele, com seu formato de rosto, com seu perfil. De que adianta comemorar o fato de que a Miss Universo é negra se lhes é tirado a possibilidade de sonhar em representar seu clube e apresentar-se, aos demais clubes, ostentando sua beleza negra? O espelho que a escolha da “miss universo” lhe proporcionou ficou muito distante da sua realidade, porque o espelho social, que seu clube lhe apresenta, não reflete sua imagem.
Porem o mais preocupante é não encontrar resposta para as perguntas que ficam incrustadas na alma das crianças negras e das adolescentes negras, se mesmo no clube que deveria lhes referenciar elas veem negada a possibilidade de representar a sua beleza, o seu jeito, a sua cultura, o seu orgulho.
Creio que a escolha de uma rainha branca para representar um clube social negro fica por conta de uma suposta democracia racial e de uma interpretação equivocada do que seja promoção da igualdade racial, onde a cultura, a religião, os arquétipos, os espaços e as conquistas de negros e negras estão, cada vez mais, sendo embranquecidas. Vide o carnaval, a capoeira, o futebol e até mesmo as imagens dos deuses africanos... Mas o que ainda é pior, com o mesmo mecanismo utilizado pelos colonizadores desta Terra,que roubaram da África o que de melhor havia, está havendo uma apropriação das “coisas” que antes eram de negros e por isso eram consideradas pejorativas, ou seja, hoje, essas “coisas”, por serem fonte de renda e estarem a serviço do enriquecimento de alguns, passaram a ter um valor e um interesse premeditado, que muitas vezes passa despercebido pela maioria e , gradativamente, estão se tornando inacessíveis aos primeiros protagonistas: os negros e as negras.
Como um pedaço de verdade, gostaria que homens e mulheres, militantes da causa negra, reagissem cada vez que nossos filhos ou nossas filhas não se enxergarem no espelho social da sociedade brasileira. E que fique registrada a minha tristeza pelo fato de um clube social negro ter pisoteado sobre o sonho de suas representantes negras, tirando-lhes a possibilidade de orgulharem-se de representar seu clube, de reforçar sua identidade através da estética e da beleza da mulher negra.










1 In: Negras Palavras Gauchas/ organizador: Oscar Henrique Marques Cardoso. Evangraf, Porto Alegre,2013. PP.127-132.

Um comentário:

  1. A discussão de um assunto desses não é de fácil condução, pois há idéias muito difusas colocadas nos imaginários das pessoas. Misturam o que não dá pra misturar, separam o que não dá pra separar e assim vamos tentando reconstruir coisas que havíamos vencido. Falar de preconceito, racismo e exclusão, sem o real aporte cultural, nessa temática, é chover no molhado. Pertencimento negro, cuidado com essas raízes, assim como Mandela nos ensinou, não estão incorporados no negro que se deixou afetar por valores mercantilistas das competições da sociedade de hoje. A espiritualidade, elemento tão importante das culturas afros, é que determina as direções que damos as nossas vidas, porém vivemos tempos até de auto abandono, companheira, o que, então se dizer do resto? Cabe agora, uma conversa com as pessoas que dirigem esse clube, no sentido de se fazer ver que essa autonegação reflete mal para a etnia. O branco percebe muito bem, até demais, quando negamos nossos pertencimentos, nossos fenótipos, ou então, quando negamos nossos irmãos negros que sofrem o mesmo racismo de cada dia. Não podemos deixar esse fato passar despercebidamente.

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