quinta-feira, 26 de maio de 2016

Um recado de saudade à Oxum

                                                                                              por Iyá Sandrali de Oxum
Hoje eu quero falar da Saudade de um orixá. Eu quero falar da saudade e do congratular-me com a lembrança de ter sido iniciada por  um filho  de Oxum Pandá Miuwá. Eu quero falar da saudade de alguém, que não era rei nem majestade, mas era alguém real, cuja realeza se evidenciava na dança e nos passos, no corpo de um homem transformado em uma deusa, no salão do terreiro da 21 de Abril. Eu quero falar do sentimento, ainda doído,  da constatação de que hoje, mesmo sendo dia 26 de maio,  não é um dia festivo, mas apenas um dia de encontro com a lembrança e com o aperto que a saudade traz no coração e na alma. Saudade do canto e da dança de Oxum Pandá Miuwá. São cinco anos de ausência festiva, cinco anos que deixamos de nos jogar ao chão em respeitosa saudação a Oxum Pandá Miuwá, a Senhora Mãe dos Mais Necessitados, aquela que nasceu nas nascentes das águas mais cristalinas, transformando-se nos rios que correm ao encontro do mar. Cinco anos em que nosso Rio ficou caudaloso pelo acumulo de lágrimas, de desconfortos, de pedras jogadas sobre nossa dor, de desencontros em afetos tristes e de lama causada pela incompreensão e o desamor . Cinco anos de luta pela preservação do que de belo existe na manutenção da energia vital que nos une ao manto mítico da ancestralidade : somos todos e todas filhos e filhas da mesma Mãe. 26/05/2016.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Quando fui alfabetizadora e me tornei educadora



                                     Por Sandrali de Campos Bueno

                    Eu tinha 19 anos. Era fevereiro de 1969. Duros tempos. Acabara de ingressar, um ano antes, no curso de Pedagogia da UFRGS. Não era bem o que eu queria cursar. Matemática era minha opção mas tinha ficado excedente e só começaria a Matemática em 1970. Enfim... Anos duros da minha juventude onde muitos e muitas de nós foram subtraídos. A Pedagogia foi apenas um trampolim, curso na época vinculado à Faculdade de Filosofia, ou não? Não lembro mas eu transitava por esse “Diretório Acadêmico dos estudantes comunistas” para pavor da minha mãe que vivia queimando os livros “dessa gente” com medo que eu fosse subtraída “como aquele teu amigo que nunca mais soubeste o paradeiro” (Palavras da D. Tuly, minha mãe).
                    Meu primeiro emprego foi no extinto Instituto Central de Menores, na época vinculado ao Departamento de Assistência Social, para alfabetizar “menores delinquentes” com idade acima de doze anos que não podiam frequentar a escola vinculada ao Instituto que também “acolheu” presos políticos por certo período. A única coisa que lembro em relação a esse “acolhimento” era que um deles gostava de tocar o velho piano. (assim falara a Diretora da Escola).
                    Para mim que cursara o Científico e prestara vestibular para Matemática, ser alfabetizadora era algo novo. Minha experiência anterior era ajudar meus irmãos a fazerem suas tarefas escolares. No primeiro dia de aula, num dia do mês de fevereiro depois do carnaval, os alunos estavam, desde as cinco horas, ajoelhados no saibro do pátio. Eram oito e meia da manhã. Olhei através da janela e quando fui busca-los, indignada com o que assistira, ouvi o seguinte: “vá se acostumando professorinha”. Fomos acompanhados até a porta da sala de aula por um policial militar que prestava serviço.  O policial se retirou e me desejou boa sorte dizendo que voltaria ao meio dia para buscar “esses daí”. Entramos na sala de aula e, pela primeira vez, era eu e eles num espaço por mim desconhecido em todos os sentidos. Eu tremia, mais que 'vara verde em dia de temporal', diante de guris de quatorze a vinte anos de idade que expressavam no olhar a raiva que sentiam por todos que trabalhavam naquela instituição. Alunos que não sabiam ler mas deixaram, no quadro verde da sala, como recepção a mim, algumas palavras que identifiquei como “palavrões”, , como ‘bcetda’, ‘cu’, ‘pisa’. 
O que fazer? Alguns riam, outros me observavam em silencio com expressão de desconfiança. Dois deles levantaram na intenção de apagar o que estava escrito no quadro. Eu, não sei nem de onde tive a ideia iluminada, perguntei: vocês sabem o que está escrito aí? Todos eles riram. Eu repeti a pergunta e um deles, que aparentava ter a mesma idade que eu, respondeu: “não foi a gente que escreveu”. Eu disse: eu não perguntei quem escreveu. Eu perguntei se vocês sabem o que está escrito. Silencio total.  Naquele momento senti que dominaria a situação. E falei: Vamos fazer o seguinte, a gente vai deixar isso que está escrito aí neste quadro pois como nenhum de nós sabe o que é, vamos juntos tentar descobrir o que é. Cada dia nos vamos descobrir um pedaço de cada palavra. Certo? E hoje vamos começar por essa aqui.
 E apontei para ‘cu’. Chegar em 'es-cu-lham-bar' foi um caminho repleto de singularidades e de válvulas de escapes através das janelas do conhecimento.
A partir dali comecei minha experiência singular de ensino-aprendizagem com dez ‘menores delinquentes’ e os palavrões passaram a ser palavras-chaves para abrir a porta do processo de alfabetização da minha turma, sem que eu nunca tivesse ouvido falar de Paulo Freire.  
Mais tarde a escola oportunizou que eu fosse frequentar   um curso de Aperfeiçoamento para os Professores que trabalhavam nas escolas do DEPAS. Fui, contei o que estava fazendo e ouvi o seguindo: Cuidado, esse método não pode ser utilizado. E tu não cursaste o Normal. Nunca mais falei sobre isto mas continuei fazendo o que dava prazer de ensinar e aprender:  eu e meus alunos, com a ajuda de mais duas colegas, utilizando um mimeógrafo, criamos uma cartilha com todas as palavras que eles usavam no seu cotidiano.
                    E fomos evoluindo e envolvendo outras pessoas no processo como por exemplo a monitora responsável pelas atividades de recreação que criou vários jogos, inclusive um baralho de cartas, que eles diziam ser “baralho pra louco”, com conteúdo de matemática, história e geografia.
                    Mais tarde, quando já cursava Psicologia tive contato com a obra de Paulo Freire e descobri porque “o método era perigoso”.
                                                           

                                                        Pelotas, 21 de abril de 2016.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Às pessoas brancas que são minhas amigas.

               Relaciono-me  com várias  pessoas brancas: pessoas que reivindicam o lugar de irmandade com os mesmos conflitos inerentes aos relacionamentos intrafamiliares; pessoas que, em determinados momentos, ocuparam o lugar  de solidariedade incondicional, a ponto de pôr em risco sua própria estabilidade;  pessoas de eterna permanência no lugar de filha-afetiva-espiritual, com mil passagens pelas minhas vidas, como sendo a alma gêmea de que falam os místicos; pessoas que são o contraditório diante das radicalidades inerentes às afiliações a grupos e confrarias; pessoas que compartilham o cotidiano dos espaços sagrados da minha tradição,  vivenciando os pressupostos civilizatórios da matriz africana; pessoas cuja relação transcende o respeito e atinge a admiração da aprendiz pela mestra, partilhando os avanços e recuos na luta por um mundo livre de preconceitos; pessoas cuja divergências são apenas linhas que correm paralelas aos meus vetores, na mesma estrada, como trilhos inseparáveis que formam o caminho por onde transita o trem dos sonhos e das utopias de quem acredita que 'um mundo melhor é possível'; pessoas que contribuem na construção do meu arcabouço teórico e epistemológico, através da visita de outras formas de pensar as construçoes das singularidades e das desconstruções conceituais; pessoas que vibram com meu jeito de desafiar o instituído na busca de respostas inovadoras que sirvam de encontros com a alegria e o prazer que o conhecimento propicia; pessoas que simplesmente apreciam os diálogos, ao final da tarde, nos anexos da alma chamados pela alcunha de bares, praças, ruas e avenidas transformadas em espaços onde a democracia se faz corpo e alma; e a pessoa onde encontro “meu refúgio e meu abraço depois do cansaço”.

                 São tantas as pessoas brancas a transitar pelas vias dos caminhos por onde meu corpo passa, amalgamado pelas vivencias de outros corpos, numa circularidade fortalecida pela troca infinita, que justifica minha presença nas suas vidas, que adjetivá-las, pela cor da pele, é apenas um jeito de alertar que o racismo faz parte da natureza da branquitude. Alerta que estas pessoas, que comigo são afetadas pela troca de saberes e de sensações, não ousam falar por mim, pois antes de qualquer coisa, como são minhas amigas, sabem que eu sei do racismo que há dentro delas e com o qual convivem querendo ou não.
                As pessoas brancas que são minhas amigas percebem e reconhecem o lugar privilegiado que a branquitute a elas confere. As pessoas brancas que me tem como amiga , respeitam-me como a ‘chata” que sempre apontou o racismo de cada uma. Portanto, encerro dizendo: obrigada, pessoas brancas que são minhas amigas! Obrigada, pelo bem-estar de vocês mesmas que se tornaram pessoas melhores, ao terem que abandonar o desejo contido de adotar a postura de sinhazinha e sinhozinho.

domingo, 6 de março de 2016

Carta a minha sobrinha Jessica


                                                                            Porto Alegre, 6 de março de 2016.

 Jessica,  minha jovem mulher Negra Espelho.

                     A vida tem sentido quando deixamos nossa marca e nossa herança genética seja ela através de nossos feitos, seja através dos feitos que hão de ser feito pelos nossos. E a tua reação, querida Jessica, diante de um ato de racismo sofrido por tua irmã, na escola, deu-me a certeza de que a vida das mulheres e dos homens da nossa família tem sentido. Temos a marca da indignação diante de qualquer ato que fira nosso direito de ser e de ‘tornar-se pessoa’, em busca do seu lugar, em todos os lugares, com a mesma dignidade com que nossos ancestrais forjaram, no corpo e na alma, o direito de expressar a revolta diante dos ditames da opressão e do racismo. Por isso, nós não podemos aceitar que, professores e direção de uma escola, minimizem o sofrimento de uma adolescente de 14 anos que teve sua autoestima ultrajada e a sua herança genética vilipendiada por um comentário racista, explicitado como se fosse brincadeira, alem de demonstrarem não estarem preparadas para lidar com manifestações racistas entre seus alunos. Para nós, cuja herança é negra, é afrodescendente, “bulling” é racismo! Só nós sabemos a marca que supostas brincadeiras causam na nossa trajetória de convívio social. Só quem sente , sabe a dor que perpassa pela percepção de que não nos aceitam porque não temos a cor da pele daqueles que se entendem como sujeitos “do tudo pode”, nem os cabelos lisos daquelas que se veem representadas como padrão único de beleza e de afirmação de convivência pacífica nas relações instituídas, desde a mais tenra idade, nos bancos escolares, a ser consolidado pela hegemonia  racista, classista e patriarcal  de uma sociedade que não se reconhece,   enquanto nação, ao se envergonhar de suas raízes indígenas e africanas, preferindo permanecer com a herança e os resquícios de colônia europeia.
    
                    Houve um tempo que essa dor era silenciosa, tão silenciosa que a reação de uma adolescente quando lhe era colocado o espelho do olhar preconceituoso, perversamente reforçado pela voz afirmativa de uma educação racista, era a utilização de mecanismos de defesa que reafirmavam o mito da democracia racial e assumia a postura de revolta interior e de briga com o que Sê É na mais ampla conexão com outros corpos, pois esperava-se que o espelho social refletisse a mesma imagem que era vista  e sentida no olhar afetivo das pessoas  iguais, no convívio do lar, no convívio da sua comunidade. Como isso sempre foi impossível, a sociedade  nos obrigou a sermos ovelhas guiadas por um pastor chamado inconformismo ‘intra-raivoso’ e edificou seu racismo-machismo. sob o pressuposto  de  nos tornar uma caricatura embranquecida, nos gestos, nas atitudes, nas escolhas, nas falas, nas relações; enfim, obrigaram-nos a manter a alma, o corpo, o olhar, o querer, a autoestima, numa prisão onde os padrões, inacessíveis e exógenos, estão destituídos de qualquer vínculo com o espelho de nossa verdade interior. A verdade de que somos feitos à semelhança da Natureza, a verdade de que somos uma das expressões da Origem da Humanidade, a verdade de que somos Terra, Fogo, Água e Ar, na mesma proporção que todos os seres vivos que habitam esse planeta.

                    Este mesmo tempo, que para nós é sagrado por ser a expressão da luta cotidiana, dos devires, das multifacetas da corporeidade e das singularidades, mostrou que, se o espelho social não reflete nossa imagem, chegará a hora de nos reconciliar com a imagem interna e sermos o espelho de nós mesmas. E essa hora chegou! Deixamos a reação de lado e passamos à ação. Deixamos de brigar com a aparência, deixamos de nos revoltar com desejos impostos pela branquitude, deixamos de nos caricaturar naquilo que nunca fomos e jamais seremos. Soltamos as amarras do padrão eurocêntrico. Deixamos de nos mirar num espelho embaçado e passamos a nos mirar nos encontros alegres e nos sorrisos espontâneos, traduzidos no reflexo negro do olhar das crianças, das jovens, das mulheres e dos homens despojados de preconceitos e passamos a ter como referência a beleza intensa e colorida da negritude. E passamos a gritar exigindo respeito como Jennifer fez na sala de aula, ao ter sido confrontada com o racismo-machismo do seu colega que, de forma “ludicamente” perversa, comentou sobre o ato de arrumar os cabelos dizendo não ser necessário “porque o teu cabelo é ruim e feio”. Jennifer mostrou-se como ovelha negra. Sua dor exigiu respeito e gritou.  E, mais humilhante ainda. foi o descaso da professora e da direção da escola. Jennifer chorou e a humilhação transformou-se em indignação. O cabelo crespo da Jennifer, assim como sua indignação se espelha em ti Jessica: na conquista de se ver a partir do teu espelho, pois é contigo que se identifica;  quer ser linda como tu és, uma jovem mãe negra que faz o que quer de seus cabelos, de sua beleza, de seu corpo e do seu lugar dando sentido às tuas escolhas, aos teus traumas , às  tuas cicatrizes e à tua subjetividade, diante da ferida narcisista de “tornar-se negra”, conforme nos revela Neuza dos Santos Souza(1983) em seu trabalho Tornar-se Negro.

                    Hoje não queremos mais a reação de nos apresentar diante da vida de forma caricatural. Hoje nossa ação é encontrar nossas raízes e nossa ancestralidade como alicerce para desvelar significados racistas na atitude e conduta da instituição escolar e demais instancias e segmentos da sociedade brasileira. Hoje somos todas ovelhas negras que nos auto-conduzimos. Ainda sentimos a dor que o racismo nos impõe, ainda temos cicatrizes, mas hoje a dor não é silenciosa. A dor se transmuta em ação.   Ela é barulhenta, barulhenta como o som dos nossos tambores que nunca estiveram adormecidos e será tão ensurdecedora até que nossas vozes sejam ouvidas e respeitadas e o barulho seja um encontro alegre de todas as cores, saberes e fazeres, de várias faces e vários rostos, de éticas que convirjam em direção do ‘devir a ser’ de cada pessoa e da liberdade plena sem a preocupação com o limite da outra, pois o limite será a felicidade de todas porque cada pessoa só se contentará em ser feliz se todas o forem.

                    Por tudo isso, querida Jessica, abençoada seja a tua ação, abençoada seja a tua fala, abençoado seja o barulho da tua voz na defesa do direito de que a Jennifer e de que toda adolescente, toda jovem, toda mulher seja o espelho de si mesma para que tantas outras se mirem no DevirMulherNegra.          
                                                     Que sejas sempre meu espelho assim como serei sempre o teu.
                                                                                      Tua tia  
                              Sandrali de Campos Bueno- Iyá Sandrali de Oxum
                                         






domingo, 24 de janeiro de 2016

Dicotomias

No embate das idéias e dos escritos,
           deparo-me com a contradição que pauta o fazer no cotidiano.
Não é de idéias que   vivemos, nem é a escrita que garante o SER.
          A vida é constante busca daquilo que DEVO -SER.

Mas ao escrever e idealizar
         encontro-me com tradições que se buscam
nos ideais e nos fazeres do Viver por um DEVIR
       que se expande na Corporeidade do Existir.

Não existo porque penso, nem penso porque existo .
         Sentindo, entendo a existência
que em mim só faz sentido na vida do pensamento
        sendo eu mesma, em verso e prosa, o pensar do sentimento.

"Sinto-Existo-Penso"na Circularidade experimentada
            de que meu Corpo se alimenta,
na busca de outros embates desconstruindo empates
            que se perdem no confronto, apenas por terem um ponto.

E se meu Corpo experimenta... é na dança e no canto
             que de mim me torno consciente,
seja a musica expressão da tristeza
 e o canto seja um lamento,
           pois quando danço,  minha dor se sintoniza com o prazer que há de vir
     ao desmanchar a dicotomia  de sofrer por mal ou bem,
Ou será por bem  e mal?
              ( Porto Alegre,24/01/2016)

Pensamentos

Portanto...

depois do espanto
veio o encanto
trazendo o acalanto
do riso e do pranto
Esquisito, no entanto
pois escondeu-se em canto
que aflora no ponto
finalizando em um ponto.
       (Pelotas ,06/01/2015)

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Sem asperezas

Meu caminho nunca foi de levezas
Meu começo é onde tropeço
pois nada sou quando nado
mas tudo posso se mudo
o rumo das minhas certezas
        (Pelotas, 07/01/2015)

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sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O que é uma família?


                                                Iyá Sandrali de Oxum
Antes de tentar responder a essa pergunta farei outra. Quem disse que tenho o direito de definir o que é uma família? Dizem, os meus mais velhos, que somos uma grande família. Uma família que se expande por muitos lugares e pomares. Na nossa tradição, vamos fazendo, durante os longos ou breves anos de existência, no mundo dito real, várias conexões de laços e enlaces que fazem com que, gradativamente, tecemos uma malha de elos que nos ligam uns aos outros, independente dos laços consanguíneos. São laços e escolhas que tecemos e fazemos através de experiência compartilhada pela necessidade de encontros e afetos que, muitas vezes, o agrupamento básico, responsável pela nossa existência no mundo, não dá conta. Eu nasci sem irmã. Mas hoje tenho a Eva, a irmã que escolhi aos meus vinte anos, mas também tenho outras tantas que fui conquistando, irmãs de todas as cores, vivencias e tribos,como a minha comadre Maria Inês, como a Diná, a Sonia, a Alvarina, enfim... Muito antes de conhecer a pessoa com quem me casaria, já tinha escolhido a Nadir, cozinheira do ICM, para chama-la de ‘minha sogra”, o que fez com que todas nos que tínhamos uma relação além da de trabalho, assim a chamássemos até hoje, embora eu tenha me divorciado e seu filho não seja mais o meu marido. Mas ele não deixou de ser o pai das minhas filhas, nem ela deixou de ser a “minha sogra. ”. Eu antes de parir já tinha uma filha, a Zélia, a filha que conquistei e me fez amorosamente “vodrinha” do Ariel e da Ju. Parece que estou escrevendo sobre coisas distintas. Parece, mas não é. Tenho tios e tias biológicos, tios e tias “emprestados” e, todos e todas, com suas ligações familiares, fazem parte da minha família; seus filhos e suas filhas, os filhos de seus filhos e filhas são meus primos e minhas primas. Mas também tenho a Janira que, mais que tia, é minha irmã. Bebeu o mesmo leite materno que eu e fomos criadas como se irmãs fossemos. Então a filha dela é mais que prima, ela é minha sobrinha.E a minha tia Breminha que também é minha mãe, pois ajudou a me criar. A filha da Eva não nasceu de seu ventre, mas é minha sobrinha e, também, é minha filha, por laços da tradição. Tenho três irmãos, de pai e mãe, sendo que dois já retornaram à massa mítica, mas tenho outros tantos que o são pelos laços da tradição, como o Edgar, por exemplo, que faz eu me sentir protegida sempre que a necessidade de compartilhar a saudade ou o conhecimento se faz presente. E, pela tradição um dos meus primos, tornou-se meu Bàbálorisá, meu pai. Seus filhos são meus primos, mas também são meus irmãos, mas alguns me percebem como tia, pois seu pai era considerado como filho de minha mãe. Tenho sobrinhas que são minhas filhas e tenho filha que é minha neta. Tudo isto sem qualquer resquício de distúrbio psicológico. Apenas sendo uma família com vários núcleos que se interligam através de relações de afeto, de compromisso e de tradição.  Somos uma família com muitos núcleos. Núcleos que formam uma rede de proteção, com os mesmos encontros e desencontros das famílias definidas como “normais”. Então senhores deputados, tirem seu preconceito e seu retrocesso de cima de nós. A família definida por vocês não nos contempla e o seu estatuto é letra morta, tal qual um pedaço de papel escrito com a mesma tinta que marcou os atos antidemocráticos
 da época da ditadura.