Por
Sandrali de Campos Bueno
Eu tinha 19 anos. Era
fevereiro de 1969. Duros tempos. Acabara de ingressar, um ano antes, no curso de
Pedagogia da UFRGS. Não era bem o que eu queria cursar. Matemática era minha
opção mas tinha ficado excedente e só começaria a Matemática em 1970. Enfim...
Anos duros da minha juventude onde muitos e muitas de nós foram subtraídos. A
Pedagogia foi apenas um trampolim, curso na época vinculado à Faculdade de
Filosofia, ou não? Não lembro mas eu transitava por esse “Diretório Acadêmico
dos estudantes comunistas” para pavor da minha mãe que vivia queimando os
livros “dessa gente” com medo que eu fosse subtraída “como aquele teu amigo que
nunca mais soubeste o paradeiro” (Palavras da D. Tuly, minha mãe).
Meu primeiro emprego foi no
extinto Instituto Central de Menores, na época vinculado ao Departamento de
Assistência Social, para alfabetizar “menores delinquentes” com idade acima de doze anos que não podiam frequentar a escola vinculada ao Instituto que também
“acolheu” presos políticos por certo período. A única coisa que lembro em
relação a esse “acolhimento” era que um deles gostava de tocar o velho piano.
(assim falara a Diretora da Escola).
Para mim que cursara o
Científico e prestara vestibular para Matemática, ser alfabetizadora era algo
novo. Minha experiência anterior era ajudar meus irmãos a fazerem suas tarefas
escolares. No primeiro dia de aula, num dia do mês de fevereiro depois do
carnaval, os alunos estavam, desde as cinco horas, ajoelhados no saibro do
pátio. Eram oito e meia da manhã. Olhei através da janela e quando fui
busca-los, indignada com o que assistira, ouvi o seguinte: “vá se acostumando professorinha”. Fomos
acompanhados até a porta da sala de aula por um policial militar que prestava
serviço. O policial se retirou e me
desejou boa sorte dizendo que voltaria ao meio dia para buscar “esses daí”. Entramos na sala de aula e,
pela primeira vez, era eu e eles num espaço por mim desconhecido em todos os
sentidos. Eu tremia, mais que 'vara verde em dia de temporal', diante de guris de quatorze a vinte
anos de idade que expressavam no olhar a raiva que sentiam por todos que
trabalhavam naquela instituição. Alunos que não sabiam ler mas deixaram, no quadro verde da sala, como
recepção a mim, algumas palavras que identifiquei como “palavrões”, , como ‘bcetda’, ‘cu’, ‘pisa’.
O que fazer? Alguns riam,
outros me observavam em silencio com expressão de desconfiança. Dois deles
levantaram na intenção de apagar o que estava escrito no quadro. Eu, não sei nem
de onde tive a ideia iluminada, perguntei: vocês
sabem o que está escrito aí? Todos eles riram. Eu repeti a pergunta e um
deles, que aparentava ter a mesma idade que eu, respondeu: “não foi a gente que escreveu”. Eu disse: eu não perguntei quem escreveu. Eu perguntei se vocês sabem o que está
escrito. Silencio total. Naquele
momento senti que dominaria a situação. E falei: Vamos fazer o seguinte, a gente vai deixar isso que está escrito aí
neste quadro pois como nenhum de nós sabe o que é, vamos juntos tentar
descobrir o que é. Cada dia nos vamos descobrir um pedaço de cada palavra.
Certo? E hoje vamos começar por essa aqui.
E apontei para ‘cu’. Chegar em 'es-cu-lham-bar' foi um caminho repleto de singularidades e de válvulas de escapes através das janelas do conhecimento.
A partir dali comecei
minha experiência singular de ensino-aprendizagem com dez ‘menores
delinquentes’ e os palavrões passaram a ser palavras-chaves para abrir a porta
do processo de alfabetização da minha turma, sem que eu nunca tivesse ouvido
falar de Paulo Freire.
Mais tarde a escola oportunizou
que eu fosse frequentar um curso de Aperfeiçoamento para os
Professores que trabalhavam nas escolas do DEPAS. Fui, contei o que estava
fazendo e ouvi o seguindo: Cuidado, esse
método não pode ser utilizado. E tu não cursaste o Normal. Nunca mais falei
sobre isto mas continuei fazendo o que dava prazer de ensinar e aprender: eu e meus alunos, com a ajuda de mais duas
colegas, utilizando um mimeógrafo, criamos uma cartilha com todas as palavras
que eles usavam no seu cotidiano.
E fomos evoluindo e
envolvendo outras pessoas no processo como por exemplo a monitora responsável pelas
atividades de recreação que criou vários jogos, inclusive um baralho de cartas,
que eles diziam ser “baralho pra louco”, com conteúdo de matemática, história e
geografia.
Mais tarde, quando já
cursava Psicologia tive contato com a obra de Paulo Freire e descobri porque “o método era perigoso”.
Pelotas, 21 de abril de 2016.
Relato a pedido da minha filha Ayanna de Campos Bueno, aluna do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Pelotas
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