segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A Ousadia a Serviço da Coletividade



 SOBRE O IV ENCONTRO NACIONAL MULHERES DE AXÉ: A Ousadia a Serviço da Coletividade[1]
                                  O Encontro Nacional Mulheres de Axé, organizado pela Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde, surge a partir da proposição do GT Mulheres de Axé que tem como coordenação nacional Mãe Nilce de Oyá e Vilma de Oyá. O GT tem como finalidade estimular e fortalecer o protagonismo das mulheres de terreiro nos espaços de decisão política, tendo como referência a história das Ialodês e Ialaxés (mulheres africanas e da tradição religiosa de matriz africana que comandam suas comunidades e as decisões político-comunitárias). Seus objetivos são: contribuir para o ativismo das mulheres de terreiros e a ampliação da participação delas nos espaços de defesa de direitos e controle social de políticas públicas, – qualificar as  informações sobre a Política Nacional de Saúde da Mulher com ênfase nos direitos  sexuais e reprodutivos, – estimular nos espaços internos e externos aos terreiros o desenvolvimento de ações de promoção da igualdade de gênero, e de promoção e proteção dos direitos e da autonomia das mulheres. (www.mulheresaxe.blogspot.com/‎).
                    Nossa ousadia começou no último dia do III Encontro Nacional Mulheres de Axé da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde, realizado em 09 e 10 de março de 2012, no Rio de Janeiro, quando eu e Nina Fola, sob o clima da emoção, resolvemos disputar, com outras representantes, a cidade sede para realização do IV Encontro. Entre as capitais que concorreram estavam Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte, Rio Branco, Manaus, São Paulo, São Luís, Alagoas, enfim, o apelo tanto em relação às atrações turísticas quanto aos aspectos da tradição da matriz africana eram muito fortes. Combinei a defesa com Nina que rascunhou três argumentos para que eu pudesse elaborar a fala. Diga-se de passagem, que era minha estréia e as pessoas que me conhecem sabem que não sou dada a competições (prefiro os consensos). Bem, apesar de sermos o Estado onde as pessoas mais se auto-declaram como adeptos da tradição de matriz africana, (segundo dados do IBGE e FGV), é justamente aqui onde se verifica alta incidência de situações de intolerância religiosa, machismo, xenofobia, muitas vezes, estrategicamente, submersas sob o cruel e eficaz véu de invisibilidade. Contudo, o argumento mais convincente foi em relação ao trabalho que a RENAFRO Núcleo RS realiza e a luta pelo Estado Laico, (como por exemplo, a retirada dos símbolos religiosos dos espaços de poder públicos) que fez com que, por aclamação, a Plenária votasse na cidade de Porto Alegre para sediar o IV ENCONTRO NACIONAL MULHERES AXÉ. Ter defendido que o Encontro Nacional fosse realizado em Porto Alegre foi um desafio ao qual sabíamos da responsabilidade e compromisso com a nossa REDE tão bem construída e conduzida pelos seus coordenadores. Somos gratas pelo cuidado com que Ogan Marmo e Baba Diba tem para com esse processo. O reconhecimento do papel das nossas lideranças nos deu mais força para continuar firme no entendimento de que a auto-organização das mulheres seria um instrumento essencial para o sucesso do encontro. Como Baba Diba diz: a Rede toda é das Mulheres de Axé.
           O Rio Grande do Sul tem dado mostras de sua capacidade organizativa, bem como realizado avanços na construção de políticas para o Povo de Terreiro e não seria diferente com a organização das mulheres de axé. O racismo e o machismo são estruturantes do sistema colonialista e nos atinge de forma muito brutal. O feminismo ocidental não nos contempla, mas o machismo nos atinge indistintamente e temos poucos recursos para recorrer em se tratando de protagonismo político, social e econômico. Tudo isto e muito mais são fios   a serem tecidos pelas mulheres de axé da nossa Rede apoiadas pelo fio condutor das nossas lideranças masculinas para que juntos possamos vivenciar na concretude  da matriz africana os princípios civilizatórios que nos manteve até aqui fortes e unidos.
          Em julho de 2012, ousamos mais uma vez e realizamos o I ENCONTRO ESTADUAL MULHERES DE AXE, na cidade de Pelotas. Enfrentar o frio foi o de menos, mas conseguimos realizar um encontro tímido, sim, mas com a nossa marca, ou seja, ofertando o que de melhor tínhamos naquele momento e transformando o encontro numa estratégia para a organização das pautas que queremos e precisamos tratar com todas as mulheres e homens de axé. Nosso eixo condutor foi: O que é TORNAR-SE MULHER DE AXE?  Isto nos conduziu até a realização do Nacional, principalmente na figura da sempre impecável Nina Fola, cujo protagonismo como coordenadora expressa a circularidade do poder mítico social e o respeito pela hierarquia da tradição de matriz africana.
                      E fomos caminhando rumo ao IV Encontro: foram muitos os questionamentos, as preocupações, os cuidados, as idiossincrasias, as indignações, os diálogos, as trocas de email, enfim o trabalho e a exigência que caracterizam a nossa forma de realizar eventos, muitas vezes, não correspondiam com as respostas recebidas ou não recebidas. E muitas vezes nossa indignação foi acolhida pelo nosso coordenador Baba Diba que nos impulsionou a manifestar nosso sentimento de forma concreta. Esta postura foi decisiva, principalmente na minha atuação como uma das coordenadoras e como palestrante, considerando desde a importância da entrega do presente das Águas, como uma característica dos eventos realizados no Rio Grande do Sul (afinal o encontro era de mulheres e, portanto o presente para as Yabás era questão prioritária) até o compartilhamento da mesa na Conversa de Axé que tratava da violência contra as mulheres. Mas também foi a boa provocação de Ogan Marmo que fez o diferencial na minha apresentação ao responder uma mensagem: “Mãe Sandrali precisamos ousar e contamos com a senhora: ouse!”
            E daí mais uma ousadia, a ousadia na fala amorosa que se pretende curadora: uma fala não sobre o que penso da violência, mas sim sobre a dor causada pela violência, pela intolerância, pelo sexismo, pelo machismo, pela lesbofobia. Uma fala não da psicóloga, da especialista em criminologia, mas um relato real na fala de uma mãe de santo que se coloca no lugar de filha para poder dar voz ao sofrimento com o objetivo de criar uma estratégia amorosa no processo de cura através do compartilhamento e acolhimento que só o coletivo pode propiciar. A experiência foi incomparável e o que recebi em retorno justifica a situação de exposição em que me coloquei. Alguém me disse que fui muito corajosa. Não. Eu apenas ousei. Ousei pelo único objetivo de não calar diante da dor de muitas mulheres que continuam a mercê da violência estrutural do Estado brasileiro. Ousei porque não queremos ser adornos ou espectadoras. Ousei porque apesar dos avanços da Rede nós precisamos avançar muito mais; ousei porque rede se enlaça, se estende e se deixa tecer coletivamente; ousei porque queremos construir com todos e todas, mas especialmente com as mulheres do povo, queremos mudar o discurso que tem sido branco e patriarcal. Queremos muito mais ouvir do que falar, pois é através da fala das nossas Iyás (mais velhas ou mais novas), da fidelidade à tradição e do protagonismo individual e coletivo que construiremos políticas capazes de mudar a realidade e as condições em que vivem a maioria das mulheres a quem a violência, a discriminação e as intolerâncias mais atingem. Ousei porque queremos que cada mulher se enxergue na outra e que suas falas sejam reais, queremos que cada encontro se transforme em espaço de fala estruturado por nós mesmos e que possamos construir e protagonizar a mudança; ousei porque, em se tratando de expressão do poder feminino, pauto-me pela circularidade e pela conscientização de que somente na Unidade e no compartilhamento de saberes, de sentimentos, de emoções é que temos a força e a racionalidade para alcançar nosso objetivo.
Asé, nguzo, mooyo, saravá.

Iyá Sandrali de Oxum
Coordenadora Estadual do GTMulheres de Axé
RENAFRO/RS







[1] Artigo escrito para o Jornal Raízes do Axé. Um encontro de fé.  www.jornalraizesdoaxé.com.br


domingo, 15 de dezembro de 2013

Mãe, a rainha do clube é branca! 1
Por Sandrali de Campos Bueno


Há algum tempo atrás recebi essa mensagem de minha filha que ao ir ao almoço de um clube social tradicional de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, teve esta constatação: a rainha do clube é branca.
Bem, numa sociedade multi-étnica, como é a brasileira, não seria motivo de estranheza que a rainha de um clube social fosse branca, negra, índia, cigana, enfim... Mas, em se tratando, de uma sociedade onde o preconceito racial é cruelmente dirigido aos negros e negras, independente da classe social, é de se estranhar que a rainha de um clube social negro seja branca, principalmente de um clube social negro de uma cidade do interior do estado. Espaço social negro de uma cidade onde as marcas do colonialismo escravocrata estão incrustados nas paredes das mansões que ainda preservam espaços onde a dignidade de uma civilização era diariamente ultrajada;de uma cidade que prosperou graças ao comércio da carne salgada,pelas mãos dos trabalhadores negros,cujo conhecimento,sabedoria e religiosidade transformaram a carne amarga,do gado maltratado, em alimento sagrado e compartilhado com o ser humano; das estâncias às margens do arroio cujas águas, outrora , misturaram-se ao sangue dos negros escravizados; sangue, suor e lágrimas que também serviram para regar flores, frutas e orvalho dos jardins e pomares onde as senhorinhas passeavam; nas calçadas das ruas que, acerca de cem anos atrás, dividia-se em espaços distintos e demarcados pelo preconceito , discriminação e racismo:onde branco andava, negro não podia pisar;de clubes sociais com rainhas, princesas e princesinhas, duquesas e duquesinhas que mantem a tradição europeia,de rendas e brocados,na ilusão de que o espaço privado é mais importante que o espaço coletivo do exercício da cidadania.
Sempre que faço alguma consideração a respeito de um tema ou de uma situação, costumo fazer uma referência a uma lenda que diz que quando a Verdade foi jogada sobre a terra, ela se esfacelou em vários pedaços e, cada um, ao pegar um pedaço disse: eis aqui a verdade, eu a tenho. Bem,ao tentar explicitar o que penso a respeito do que levaria um clube social negro abrir mão de uma rainha negra, eu estou trazendo uma parte da verdade. Certamente outros terão seus pedaços de verdade ou para se somarem à minha ou para contrapô-la. Mas como mulher negra, militante, mãe de duas mulheres negras não poderia me omitir frente à constatação de uma jovem negra.
O que significa esta constatação para uma jovem negra de vinte e três anos? Uma jovem que forjou sua identidade, desde a infância ouvindo e vivenciando sua negritude em todos os aspectos que envolvem a construção da subjetividade de uma mulher negra, numa sociedade preconceituosa, racista, machista e onde o modelo de beleza é ditado pela estética da mulher branca?
Respondo com outra pergunta: como fica a autoestima das meninas e adolescentes negras ao se verem representadas por uma moça branca? Mais uma vez se sentem invisibilizadas, pois o padrão escolhido nada tem a ver com seus cabelos crespos, com sua cor de pele, com seu formato de rosto, com seu perfil. De que adianta comemorar o fato de que a Miss Universo é negra se lhes é tirado a possibilidade de sonhar em representar seu clube e apresentar-se, aos demais clubes, ostentando sua beleza negra? O espelho que a escolha da “miss universo” lhe proporcionou ficou muito distante da sua realidade, porque o espelho social, que seu clube lhe apresenta, não reflete sua imagem.
Porem o mais preocupante é não encontrar resposta para as perguntas que ficam incrustadas na alma das crianças negras e das adolescentes negras, se mesmo no clube que deveria lhes referenciar elas veem negada a possibilidade de representar a sua beleza, o seu jeito, a sua cultura, o seu orgulho.
Creio que a escolha de uma rainha branca para representar um clube social negro fica por conta de uma suposta democracia racial e de uma interpretação equivocada do que seja promoção da igualdade racial, onde a cultura, a religião, os arquétipos, os espaços e as conquistas de negros e negras estão, cada vez mais, sendo embranquecidas. Vide o carnaval, a capoeira, o futebol e até mesmo as imagens dos deuses africanos... Mas o que ainda é pior, com o mesmo mecanismo utilizado pelos colonizadores desta Terra,que roubaram da África o que de melhor havia, está havendo uma apropriação das “coisas” que antes eram de negros e por isso eram consideradas pejorativas, ou seja, hoje, essas “coisas”, por serem fonte de renda e estarem a serviço do enriquecimento de alguns, passaram a ter um valor e um interesse premeditado, que muitas vezes passa despercebido pela maioria e , gradativamente, estão se tornando inacessíveis aos primeiros protagonistas: os negros e as negras.
Como um pedaço de verdade, gostaria que homens e mulheres, militantes da causa negra, reagissem cada vez que nossos filhos ou nossas filhas não se enxergarem no espelho social da sociedade brasileira. E que fique registrada a minha tristeza pelo fato de um clube social negro ter pisoteado sobre o sonho de suas representantes negras, tirando-lhes a possibilidade de orgulharem-se de representar seu clube, de reforçar sua identidade através da estética e da beleza da mulher negra.










1 In: Negras Palavras Gauchas/ organizador: Oscar Henrique Marques Cardoso. Evangraf, Porto Alegre,2013. PP.127-132.