terça-feira, 1 de outubro de 2013

Um Pouco do Meu Memorial.



          Meu nome é Sandrali de Campos Bueno (Iyá Sandrali d’Osún), nasci em 10 de maio de 1949, em Porto Alegre, no Bairro Montserrat, filha primogênita de Ely Souza de Campos e de Wilson Albino de Campos, mãe de Winnie de Campos Bueno e de Ayanna de Campos Bueno, com uma opção de vida marcada pela defesa incondicional dos direitos humanos.
Mulher, negra, Iyálòrisá (lê-se ialorixá), servidora pública, educadora, psicóloga, especialista em criminologia, comecei minha trajetória profissional e militante, aos 20 anos, na antiga FEBEM. Iniciei como alfabetizadora daqueles que a escola não acolhia por terem passado da faixa etária, no extinto Instituto Central de Menores – ICM, tendo protagonizado, na concretude da práxis, a mudança de paradigmas no atendimento aos adolescentes em conflito com a lei. No ICM, fui praxiterapeuta, instrutora de artes, auxiliar técnica, coordenadora de atividades, diretora, tendo sido a primeira mulher, no estado, a dirigir uma instituição destinada a “menores infratores” do sexo masculino, no período de 1987 a 1989, enfrentando todas as vicissitudes e contradições próprias de uma sociedade excludente, racista, sexista e intolerante
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          A luta por justiça e respeito à infância e à juventude levou-me  à direção do Albergue Ingá Brita que acolhia meninos e meninas em “situação de rua”. Em 1992 assumi a presidência do MAPA (extinto Movimento Assistencial de Porto Alegre), tendo contribuído para construção da política de assistência social do município, no que diz respeito ao atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de vulnerabilidade social.
Contribui na implantação do Conselho Municipal dos Direitos da Cidadania e Contra as Discriminações e a Violência (1994), tendo sido a 1ª secretária executiva, representando o Gabinete do Prefeito, na primeira gestão de Tarso Genro.
 
          Em 1996, concorri a uma vaga, como vereadora, à Câmara Municipal de Porto Alegre, pelo Partido dos Trabalhadores, representando, enquanto mulher negra, Iyálòrisà, carnavalesca, o compromisso com a luta pelas liberdades individuais, dos movimentos populares e defesa da cultura e religião de matriz africana.
Minha iniciação religiosa na tradição de matriz africana (Batuque) foi realizada sob a orientação do Bàbálórisá (lê-se babalorixá) Enio de Oxum Pandá Miwuá, sendo neta religiosa do Bàbálórisá Romário de Osalá Jobocum Onifã, bisneta da Iyálòrisà Madalena de Osún Demun, tataraneta do Bàbálórisá Valdemar de Sango Kamuká Baruwálofina. Optei por plantar meu asé (lê-se axé) na cidade de Pelotas, onde dirijo meu ilé-asé (lê-se ilê axé), minha comunidade de terreiro pautada pela concepção de que a evolução e a dinâmica da relação do sagrado e do profano se dão na mesma proporção da relação do “sujeito-iniciado” com o “sujeito – cidadão”.
          Sou um singelo elo da corrente chamada Rede Nacional de Religiões de Matriz Africana e Saúde-Núcleo RS, RENAFROSAUDE/RS coordenado por Bàbá Diba de Yemon e atuo na coordenação do Núcleo Pelotas e no GT Mulheres de Axé/RS.
          Membro do Comitê de Promoção de Igualdade Racial no Serviço Público e ONGs.
       Fui conselheira, representante do Povo de Terreiro, no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio Grande do Sul- CDES/RS, período de 2011 a 2013.
Atualmente coordeno o Comitê Estadual do Povo de Terreiro, instituído pelo Decreto nº50.112, de 27 de fevereiro de 2013, com a “finalidade de propor, sugerir, apontar e elaborar políticas públicas voltadas ao Povo de terreiro e às Populações de Ascendência Africana, considerando os pressupostos da xenofilia da cosmovisão africana”.
          Eis uma síntese da minha trajetória:
  • Como servidora pública protagonizei com outros e outras militantes e servidores a defesa pela garantia dos direitos dos adolescentes privados de liberdade e, atualmente, dedico-me à defesa pela valorização do servidor e da servidora no que tange à promoção da saúde e à transformação das relações de trabalho. 
  • Como psicóloga optei por assessorar e desenvolver meu trabalho vinculado aos movimentos sociais, em especial, na defesa e promoção da igualdade racial, pela eliminação das causas do racismo, do machismo e das intolerâncias, pela defesa da vida e por um Estado Laico. 
  • Como Iyálòrisá, luto pelo respeito à tradição de matriz africana, pela reparação civilizatória, na busca da equidade econômica, política e cultural da população negra, pela eliminação das discriminações e das violências e pela promoção de políticas públicas para o povo de terreiro e da população de ascendência africana. 
  • Como militante, meu grito é de amor e de luta por uma sociedade mais igual, onde as armas sejam a do diálogo e a do respeito às diferenças. 
  • Como pessoa, embora meu agir possa criar a ideia de complexidade, meu ideário está na simplicidade baseada em três premissas: (1) disciplina prazerosa pelo trabalho de servir o melhor cardápio que aprendi a fazer, (2) crença inabalável naquilo de melhor que o Outro tem a contribuir  (3) disputar apenas por aquilo  que conduz à Unidade.

Carta ao Secretário Marcelo Danéris






Sr. Marcelo Danéris
Secretário Executivo do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Estado do Rio Grande do Sul.
    
                                            
                                                            Sr Secretário



                     A sociedade e o Estado brasileiro têm uma dívida histórica, para com o Povo de Terreiro, em relação às ações e estratégias que, por mais de quinhentos anos, estão circunscritas no ideário de aculturamento que, de forma contraditória e violenta, destituiu e desconstruiu a ordem e a organização da cosmovisão de um povo cuja dinâmica civilizatória transcende a lógica da subjetividade individual.

                    A participação do Brasil no processo da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, em 2001 criou aspectos favoráveis para que o Estado e a sociedade atuassem de forma mais incisiva e eficaz na superação dos componentes e das desvantagens sociais produzidas pelo racismo.

                    O Estado tem um papel na promoção da igualdade racial que precisa se consubstanciar, não só através do investimento das novas articulações das políticas econômica, social e ambiental. O Estado precisa pensar a mudança como compromisso ético, moral e de ressarcimento , civilizatoriamente falando, restituindo aquilo do qual a África foi pilhada, como diz Boaventura Souza Santos: “não só material, mas também epistemológica”, como bem cita o teólogo Jayro Pereira de Jesus. Há que mudar a lógica de uma sociedade individualista para uma lógica onde as singularidades se inter-relacionam, onde a conexão seja com TUDO e com TODOS, numa perspectiva fundamentada nos valores de um processo civilizatório como obra da Humanidade.

                 Para nós, o desenvolvimento socioeconômico está intrinsecamente ligado à construção e/ou reconstrução da premissa civilizatória africana da filosofia UBUNTU o que significa que 'não podemos dar um passo a frente ou para o alto sem que toda a comunidade de um passo à frente e ao alto'.

                  O Estado do Rio Grande do Sul deu passos significativos no sentido de ressarcir os danos psicológicos, materiais, sociais, políticos, educacionais sofridos pelo Povo de Terreiro e pelas Populações de Ascendência Africana, iniciando uma política, baseada no reconhecimento do espaço do terreiro como lugar de vivência cotidiana de uma visão de mundo em que os sujeitos são indissociados entre si, entre a comunidade, entre a natureza, pois é nessa interconexão que se estabelece a harmonia, o desenvolvimento e a justiça social.

                  Estes passos tem se reafirmado a partir do diálogo entre o governo do estado e o movimento social, sobretudo quando se inaugura no Ano Internacional do Afrodescendente, uma nova interlocução expressada nos anseios coletivos do Povo de Terreiro que se reafirma para além da ritualística e da culturalização, manifestando sua atuação como eixo estratégico para qualquer discussão, definição e encaminhamento de políticas para a população de Ascendência Africana e no reconhecimento, por parte do governo, de que qualquer instrumento que se pretenda reduzir os desequilíbrios no ordenamento das políticas que digam respeito à inclusão do Povo de Terreiro e das Populações de Ascendência Africana e que se traduzam em igualdade de oportunidades e de tratamento, deve se caracterizar como instrumento de afirmação civilizatória em busca da equidade em todas as esferas dos organismos governamentais e da sociedade.

                 E foi esse diálogo que fez com que, no dia 20 de dezembro de 2011,eu passasse a representar meu Povo, o Povo de Terreiro, no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio Grande do Sul - CDESRS.

               Então, caro secretário, eu quero lhe falar, ainda enquanto conselheira que fala do lugar do povo, fala do lugar da conquista por direitos, da luta por uma sociedade solidária, fala enquanto militante, enquanto defensora de um projeto político, mas essencialmente fala porque “outros e outras falaram, outros e outras falam e outras e outros falarão” na defesa de um projeto mítico coletivo em que as armas são a do diálogo e a do respeito às diferenças e que tem a circularidade e a transversalidade como princípio civilizatório; falo pedindo a benção à ancestralidade: quero lhe dizer que dialogar e construir consensos e concertações no meio de uma diversidade de posições e segmentos, (muitas vezes, diametralmente opostos) foi uma experiência que qualificou minha trajetória.  O CDESRS, o ‘Conselhão do Tarso’, passa a fazer parte, não apenas do meu currículo político social, mas como algo a ser compartilhado como vivência prazerosa na luta por uma sociedade igualitária.

               A nova tarefa que a mim foi atribuída por indicação do movimento social e pela confiança do Governador Tarso Genro, também foi uma conquista que se consubstanciou a partir da recomendação do CDESRS, um avanço social que repercute como ação pioneira no cenário nacional, ou seja, a instituição do Comitê Estadual do Povo de Terreiro, através do Decreto nº 50.112, de 27 de fevereiro de 2013, que tem por finalidade propor, sugerir, apontar e elaborar políticas públicas voltada ao Povo de Terreiro e às Populações de Ascendência Africana, considerando os pressupostos da xenofilia da cosmovisão africana. Um novo desafio que pela circunstância do cargo torna incompatível a representatividade enquanto sociedade civil, no CDESRS.
                   
                    Como nossa filosofia é Ubuntu, isto é: “só sou porque somos”, a indicação de Iyá Carmem de Holanda, iyalorixá, mulher negra, socióloga, professora universitária, dirigente do Centro de Apoio Social Conceição, com uma atuação intensa em sua comunidade representa não só a continuidade do nosso compromisso para com o trabalho desenvolvido pelo CDES, como acrescenta e amplia o leque de contribuição do Povo de Terreiro e das Populações de Ascendência Africana.
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                     Deixo o lugar de representatividade da tradição de matriz africana no CDESRS enquanto representante da sociedade civil, mas assumo o compromisso de continuar contribuindo na busca do consenso político e social na construção de políticas que ainda se fazem necessários na saúde, na segurança pública, na promoção dos direitos sociais, na economia, na educação, enfim na construção e consolidação do projeto de desenvolvimento econômico e social que dê sustentabilidade para os avanços na superação das desigualdades e no combate ao racismo.


                                                         Porto Alegre, 27 de agosto de 2013.

                                      Sandrali de Campos Bueno- Iyá Sandrali d’Osun